Fraude
e Corrupção em Portugal
"O
inimigo sem rosto: fraude e corrupção em Portugal", da
autoria de Maria José Morgado, Procuradora Geral-Adjunta, e do
jornalista José Vegar. Outubro de 2003
Os autores são
claros: uma das principais causas da corrupção em Portugal está na
sua Administração Pública, minada pelo tráfico de influências,
cunhas, compadrios, amiguismos e todo o tipo de séquitos de clientelas.
Informação
e reflexão oportuna
Sub-capítulo:
"2.a
economia do saco azul (estrutura e significado da corrupção)
Na
sua essência, a corrupção, ao nível político-administrativo de um
Estado, consiste num acto secreto praticado por um funcionário ou por
um político, que solicita ou aceita para si ou para terceiros, com ele
relacionados, e por ele próprio ou por interposta pessoa, uma vantagem
patrimonial indevida, como contrapartida da prática de actos ou pela
omissão de actos contrários aos seus deveres funcionais.
O acto
em si é de uma simplicidade extrema, os efeitos que gera são
profundamente complexos, constituindo, quando não detectados a tempo,
um problema grave para o Estado de Direito. Isto porque a sua disseminação
conduz à desregulação dos sistemas político, social e económico, e
à degradação incontrolável dos serviços do Estado, especialmente
porque são ignorados os princípios de imparcialidade e igualdade que
devem nortear a Administração Pública, as Polícias e os Tribunais.
O Banco
Mundial, num relatório recente, garante mesmo que a corrupção é «o
maior obstáculo ao desenvolvimento económico e social». Esta instituição
defende que «a corrupção desenvolve-se num ambiente onde o poder de
membros individuais da sociedade, medido em termos de acesso aos
poderosos e em poder financeiro, suplanta o respeito pelas Leis (...)
uma alta desigualdade reduz o crescimento económico, que por sua vez
impede a redução da pobreza (...) e afecta o modo como o dinheiro público
é aplicado, divergindo o investimento de sectores menos lucrativos,
como a educação, para outros de altos lucros, como a construção».
Um académico
norte-americano, Daniel Kaufman, num já clássico artigo publicado na
revista Foreign Policy, em 1997, garante que «(...) um país corrupto
tem tendência para captar investimentos na ordem de 5 por cento menos
do que países relativamente não corruptos, e para perder metade de um
ponto percentual do produto interno bruto por ano».
Isto
porque, numa lógica de corrupção, o poder político ou administrativo
dos titulares de cargos públicos transforma-se numa mercadoria, num
objecto de negócio, orientado quase exclusivamente para objectivos
criminosos de enriquecimento ou de poder, individual ou de um grupo.
Gradualmente, vai-
-se
instalando um desvio dos fins dos poderes públicos para fins
individuais ilegítimos. Como escreve Almeida Costa, em «Sobre o crime
de corrupção» (Coimbra, 1987), «ao transaccionar com o cargo, o
empregado público corrupto coloca os seus poderes funcionais ao serviço
dos seus interesses privados, o que equivale a dizer que, abusando da
posição que ocupa, se sub-roga ou substitui ao Estado, invadindo a
respectiva esfera de actividade. A corrupção (própria ou imprópria)
traduz-se, por isso, sempre numa manipulação do aparelho de Estado
pelo funcionário que, assim, viola a “autonomia funcional” da
Administração, ou seja, em sentido material, infringe a “legalidade
administrativa” e os princípios da igualdade e da imparcialidade».
Concretizando,
a grande corrupção, ao contrário da corrupção por formigueiro ou
corruptela, surge como resultado final da manipulação de um processo
administrativo de decisão, através do qual os agentes de suborno e os
subornados, compram e vendem um poder decisório em troca de benefícios
privados criminosos. Quando a lógica da corrupção toma conta dos
serviços, acaba a distinção entre interesse público e interesse
particular. Todos os actos passam a ser geridos pela lógica do lucro fácil,
do poder arbitrário, do caciquismo, da cunha e do clientelismo.
O acto
corrupto torna-se possível pela manipulação – alimentada muitas
vezes pela burocracia rígida dos serviços – das regras e das Leis,
de forma invisível, graças aos pactos de silêncio e opacidade entre
corruptor e corrompido. No fundo, a aplicação da velha máxima de que
«a lei é rígida e a prática é mole», transforma-se na mola real
dos mecanismos de corrupção.
A violação
dos deveres do cargo, do político, autarca ou funcionário – que
deviam garantir a igualdade de tratamento dos cidadãos, a
proporcionalidade, a justiça, a imparcialidade e a boa-fé, consagrados
na Constituição –, tem um efeito de diapasão, com implicações políticas
e sócio-económicas corrosivas para todo o aparelho estatal, incluindo
o autárquico, e para a sociedade.
Ao
reproduzir-se impunemente, a corrupção vai contaminando toda a
estrutura pública, criando uma subversão desreguladora, porque a
complexa teia de interesses e cumplicidades criada vicia o
desenvolvimento do país e do próprio mercado. Surge em todo o seu
vigor aquilo que se pode denominar «modelo de capitalismo felgueirense»,
se quisermos encontrar um chavão explicativo a partir de um fenómeno
da realidade nacional actual.
O
economista José Silva Lopes, numa entrevista ao Diário Económico, em
Junho de 2003, refere estar muito preocupado com o «poder de alguns
grupos de interesse no país (...) As corporações impedem o Governo de
desempenhar as suas funções. Os lobbies mandam nos governos, não
neste (em exercício) em particular. Têm uma influência determinante e
são um grande obstáculo às reformas. Há lobbies em todos os países.
Portugal também sempre os teve. Mas com a força que têm hoje, não me
lembro».
Por seu
lado, o Procurador-Geral da República, Souto Moura, numa entrevista ao
diário Público, publicada em Janeiro de 2003, refere que «as pessoas
(...) não podem deixar amolecer as consciências ao ponto de
considerarem banais coisas que não o são porque violam leis, e vão
corroendo o edifício do Estado e a sociedade por dentro. Aí, a corrupção
é um dos elementos centrais».
Este
processo de corrosão pode ocorrer, só para referir alguns exemplos, na
Administração Fiscal, quando se trocam luvas por evasão fiscal, na
autarquia, quando há a adjudicação de uma empreitada a uma empresa
que paga o suborno em troca de outras mais competentes, na Administração
Pública, quando ocorre a contratação de favor encapotada em concurso
público, na atribuição de fundos europeus, quando são canalizados
para empresas criadas para o efeito, sem qualquer capacidade técnica, e
não para entidades genuinamente interessadas na formação de activos.
Deste
modo, num quadro de desenvolvimento descontrolado da corrupção, o
representante da autoridade pública transmuda-se voluntariamente para
agente obscuro de um mercado clandestino, com fins pessoais ilegítimos,
activista dos princípios da cunha, do clientelismo e do lucro fácil.
As suas decisões não obedecem aos interesses do Estado e a critérios
legais mas a objectivos mercantilistas. O seu poder de decisão é
negociável, corruptível, determinado pelos interesses dos lobbies, e
é da concretização destes últimos que ele extrai poder, benefício e
enriquecimento pessoal.
A
corrupção nos negócios passa a ser o negócio da corrupção. A
igualdade e a imparcialidade são uma mera recordação longínqua,
distante da vida das repartições ou dos serviços onde tais práticas
se instalem. O funcionário público, ou político, corrupto deixa de
ser agente do interesse público, colocando-se ao serviço de interesses
privados, sejam eles os de empresas, de partidos, ou de pessoas
singulares. A criação de uma teia subterrânea de influências e
interesses deixa de ser controlável, e dá origem a um poder também
ele subterrâneo, e a uma economia paralela.
Não se
pense que a disseminação de actos corruptos deixa indiferentes os
cidadãos. A Transparency International (TI), uma organização privada
dedicada ao combate à corrupção, defende, no seu relatório de 2002,
que «a percepção da corrupção como um problema global marca um
importante ponto de viragem» nas atitudes dos governos e das
sociedades. Numa sondagem realizada, também em 2002, em 47 países,
envolvendo 40 mil pessoas, três em cada dez inquiridos pela TI
responderam que «esperam um aumento da corrupção nos próximos três
anos» e garantem que esta «tem um efeito significativo na sua vida
pessoal».
Ou
seja, as pessoas acreditam que os bens jurídicos essenciais da
democracia, expostos a esta espécie de ataque sistemático, e sem
qualquer contra-
-ataque
proporcional do lado dos tribunais, dado o baixo número de condenações
efectivas, são atingidos de forma letal. Como escreve Giovanni Sartori,
sem um combate sério da corrupção, sem acusações e condenações
regulares, ou seja, sem a actuação dos tribunais, em tempo útil, nos
casos em que tal se justifique, «a democracia é o nome pomposo de
qualquer coisa que não existe».
Para
alguns especialistas do tema, como os investigadores europeus Yves Mény
e Donatella Della Porta, a corrupção tornou-se, a partir do fim dos
anos 80, o principal problema das democracias ocidentais. Baseando-se no
estudo de casos ocorridos em Itália, França, Espanha, Alemanha e
Inglaterra, Mény e Della Porta defendem que «os fenómenos de corrupção
que se desenvolveram no decurso do último decénio e, mais ainda, a
sensibilidade crescente da opinião pública para esta questão,
constituem uma das expressões mais agudas desta crise» (a dos sistemas
políticos ocidentais) e são da opinião de que o fenómeno passou já
de «endémico» a «uma espécie de metassistema tão eficiente ou
ainda mais do que os aparelhos oficiais nos quais está enxertado e dos
quais se alimenta».
O
estudo «Corrupção, Finanças Públicas e Economia Paralela»,
realizado pelo Banco Mundial, defende que «muitos políticos usam os
seus direitos para concretizar os seus interesses, como o de manterem o
seu lugar em certas empresas, apoiarem empresários politicamente amigos
e punir empresários que não os apoiam, e para subsidiar os seus
aliados. Os políticos podem também usar estes direitos para
enriquecerem (...)».
Talvez
esta corrupção dos ideiais democráticos possa ter atingido a sua máxima
expressão com Silvio Berlusconi, Primeiro-Ministro de Itália, à data
da escrita deste livro. Segundo a revista britânica The Economist,
Berlusconi protagoniza «o caso de um homem de negócios rico que usa o
seu poder político para expandir os seus negócios, através da eliminação
de investigações judiciais contra ele, e da criação de novas leis e
regulações que servem os seus interesses. (...) (Berlusconi) é o caso
europeu mais extremo de abuso da democracia por parte de um capitalista
(...)».
Mény e
Della Porta, baseando-se na análise comparativa de casos reais, não têm
dúvidas em teorizar que o alargamento da «mancha corrupta» a toda a
sociedade está intimamente ligada aos modos de fazer política
consagrados no fim dos anos 80, especialmente à exigência de grandes
quantias financeiras para o funcionamento da máquina partidária e de
campanhas eleitorais.
Também
a TI, no seu relatório de 2003, não têm dúvidas sobre uma das mais
graves origens da corrupção: «A ausência de reformas estruturais no
financiamento partidário e, acima de tudo, a ausência de agências de
investigação independentes para controlar os procedimentos contabilísticos
dos partidos, continuam a deslegitimar os partidos políticos em toda a
europa ocidental». A análise da TI decorre de um facto muito simples.
Na sondagem já citada, descobriram que os inquiridos de 33 países
consideram que os partidos políticos «são a instituição da qual
gostariam de eliminar a corrupção em primeiro lugar».
A este
estado de «extrema depressão democrática» não será alheio o facto
de, segundo Mény e Della Porta, os «novos» políticos, surgidos a
partir da década de 80, serem «trepadores» que abraçam a carreira
por motivos de «mobilidade social e ascensão económica rápidas» e
«vivem da política, pro-curando retirar dela vantagens extrínsecas ou
instrumentais».
Estes
políticos, garantem Mény e Della Porta, secundarizam o interesse público,
transformando-se em «agentes» com função claramente definida, «patrões
de gabinetes públicos (no caso português, organismos públicos), não
eleitos pelos cidadãos mas escolhidos pelo partido, tesoureiros de
partidos, que gerem as receitas ilícitas provindas das instituições públicas,
porta--pastas, que organizam as actividades ilícitas a mando dos
poderosos do partido, os homens de confiança, advogados e engenheiros,
que são colocados nas comissões de atribuição e controlo», por
exemplo de concursos públicos de obras, e, finalmente, os burocratas
encartados, fiéis aos seus padrinhos políticos».
A todos
eles, Mény e Della Porta chamam «políticos de negócios» para quem
«o reconhecimento é de ordem clandestina e de natureza económica.
A sua
principal função é a de mediação entre os diversos participantes
nas trocas ocultas, quer se trate de criar contactos ou de facilitar as
negociações entre as partes implicadas nessa troca».
São
estes «políticos de negócios» que consagram a existência de «mecanismos
mais ou menos oficiais de controlo político das nomeações de certos
funcionários (...), que conduzem a um embargo dos partidos sobre a
Administração Pública, o que cria feudos que os partidos e os seus
amigos podem utilizar para praticar a corrupção e o clientelismo». E,
obviamente, são eles que se tornam extremamente dependentes de um
sistema em que a «rede de relações e o dinheiro recolhido no mercado
da corrupção são reinvestidos no terreno da política, permitindo
assim ao político corrupto levar a melhor na competição com os seus
concorrentes no interior e fora do partido».
Hoje em
dia, em Portugal, a corrupção, confirmando a tendência europeia, já
não se manifesta apenas segundo as suas formas arcaicas, das quais a
mais conhecida é a do envelope por debaixo da mesa, na gíria chamada
«corruptela», de formigueiro, ou pequena corrupção, praticada por
funcionários menores, embora a corrupção da «mala de cartão com
dinheiro» continue a ser praticada.
No
entanto, ao nível da grande corrupção, noticiam-se práticas que
revelam ser este um fenómeno sofisticado, invisível, diluído no
sistema político e administrativo, e em todas as modalidades de crime
económico. A aplicação real do académico «metassistema».
Os
recentes casos de corrupção nas autarquias, no futebol, nas finanças
e nas forças policiais, não constituem, porventura, causas da «crise
do sistema» ou do desprestígio dos políticos e das instituições,
mas pelo contrário, são o seu «efeito», revelam o estado de degradação
do sistema. São os sintomas da doença, uma vez que nunca foi
verdadeiramente tratada a causa, identificada a sua raiz e efectuado o
diagnóstico.
A
democracia portuguesa, à semelhança de grande parte das suas congéneres
europeias, não conseguiu criar mecanismos administrativos e decisórios
impermeabilizadores à reprodução de práticas corruptas sistemáticas.
O modelo de desenvolvimento económico do nosso país, muito assente no
Estado, na subsídio-dependência, no proteccionismo, a que se junta o
adiamento das reformas estruturais, na Administração Pública, na
Justiça, Educação e Saúde, criam espaço para a economia paralela,
para o tráfico de influências, e para um séquito de clientelas
organizadas segundo o modelo tradicional do caciquismo rural, que
encontram no aparelho do Estado o alimento para a sua existência.
Aquilo que Mény e Della Porta classificam de «sociedade bloqueada»,
devido a «práticas generalizadas de arranjos secretos entre agentes»
(políticos, funcionários da Administração Pública e empresários),
proporcionados por traços omnipresentes das sociedades europeias, como
são o «patrimonialismo, o clientelismo e o nepotismo», e que, no caso
português, se alojam naquilo que se pode designar, mais uma vez, como
«modelo de capitalismo felgueirense», onde é possível encontrar o
caciquismo rural, e, claro, a cunha, o clientelismo e o lucro ilícito.
Em
termos puramente estatísticos, a realidade portuguesa não parece ser
muito preocupante, confirmando a tendência mundial para a enorme
discrepância entre a criminalidade real e a criminalidade participada,
nos crimes que estamos a analisar.
Eduardo
Viegas Ferreira, sociólogo, autor de «Crime e Insegurança em Portugal»,
defende que, a nível estatístico, a situação no nosso país é
preo-cupante, dado o facto de «as estatísticas criminais tenderem a
subavaliar a criminalidade real e a reflectir apenas a maior ou menor
capacidade de intervenção e a maior ou menor eficácia do sistema de
justiça criminal».
Viegas
Ferreira, no livro mencionado, detém-se particularmente na dificuldade
de obter números fiáveis sobre a corrupção em Portugal. Escreve ele
que «a raridade, nos registos efectuados pelas autoridades policiais,
de crimes que são induzidos ou, pelo menos, tolerados e encobertos por
funcionários públicos permite, assim, suspeitar de que os mesmos
continuam, na sua maioria, a não ser participados ou detectados».
Em
defesa da sua tese, Viegas Ferreira cita um inquérito de Boaventura
Sousa Santos, realizado em 1996, onde 8,4 por cento dos inquiridos
admitiam ter sido convidados por funcionários públicos a gratificar ou
comprar favores dos mesmos. De seguida, Viegas Ferreira extrapola esta
percentagem para um universo de 7,5 milhões de portugueses com mais de
24 anos, obtendo-se, segundo ele, «um assustador número de 600 mil
portugueses que já terão sido aliciados a comprar os favores de um
funcionário público».
A
confirmar a hipótese de Viegas Ferreira, a percepção dos portugueses
é distinta daquela fornecida por estes escassos números. Ainda segundo
a sondagem da TI, 18, 7 dos portugueses gostariam de ver o fim da corrupção
nos partidos políticos, 18 por cento no Serviço de Saúde, 14,5 na
Administração Fiscal, e 14,8 nos Tribunais, só para referir as
percentagens mais elevadas. Por outro lado, uma sondagem conjunta do diário
Público e da Universidade Católica, publicado em Julho de 2003, aponta
que a corrupção é a segunda maior preocupação dos portugueses, a
seguir ao desemprego, segundo 49 por cento dos inquiridos.
Curiosamente,
a percepção do cidadão comum coincide com a percepção dos peritos.
Para estes últimos, o adiamento constante do combate sistemático do
fenómeno em Portugal, ou a tendência para o exercício do combate
demagógico, em proclamação de comício, reforçou a tendência para o
desenvolvimento de cenários de corrupção, que permitiram o
crescimento galopante da acção dos agentes corruptos, por exemplo na
Administração Pública e no Poder Local, para citar apenas as zonas
mais combustíveis e expostas, e o exercício de uma plêiade de
modalidades de corrupção, como o tráfico de influências, a «venda»
de decisões políticas e administrativas, as ingerências na Administração
Pública e nas empresas públicas ou privadas, o cambão na contratação
de serviços públicos com percentagens indevidas, os desvios de fundos
públicos para fins privados e partidários, a utilização das
autarquias e de outras estruturas públicas para fins privados
criminosos.
As
empresas, nacionais ou multinacionais, que querem actuar no mercado
português, são obrigadas a desvalorizar a competência e a eficiência,
em detrimento da aceitação de pactos com regras ocultas, que quase se
transformaram numa exigência de certos serviços públicos.
De
acordo com o semanário Expresso, o Mckinsey Global Institute (MGI)
defende, num estudo solicitado pelo Ministério da Economia, que «a
informalidade é responsável por 28 por cento deste (o português) gap
de produtividade. Permite que empresas menos produtivas se mantenham no
mercado, fugindo ao fisco e desrespeitando as leis. Inibe as empresas de
aumentar a sua dimensão, pois isso implicaria uma maior transparência
e fiscalização. Finalmente, afasta as empresas internacionais de
entrar no mercado português, pois não sabem gerir esta informalidade».
Assim
sendo, a partir daqui, torna-se inviável qualquer controlo efectivo da
vida pública e das instituições.
A isto,
há que juntar duas características especialmente perigosas do nosso
poder político-administrativo. A primeira tem a ver com a permissão de
acumu-lação de cargos, a não limitação de mandatos e, no caso das
autarquias, com a concentração excessiva de poderes nas mãos dos
presidentes das câmaras municipais, especialmente sobre decisões económicas
e no urbanismo. A segunda não é mais do que a burocracia excessiva,
feita do emaranhamento de leis e regras, que permite o poder arbitrário,
e institucionaliza a doutrina do «dá-se um jeito».
A
partir daqui, nascem potenciais cenários de corrupção que, por sua
vez, geram uma série de fontes de corrupção, especialmente atraentes
para quem não quer jogar limpo, ou para quem está interessado em
defraudar as regras.
Segundo
o Grupo de Estados Contra a Corrupção (GRECO), um corpo de peritos
formado pelo Conselho da Europa para combater a corrupção nos países
membros, no seu relatório de avaliação a Portugal, publicado em Julho
de 2003, no nosso país «as mais frequentes formas de corrupção são
a aceitação e solicitação de subornos por parte de funcionários públicos,
realizada por entidades exteriores ao Estado (...). A percepção (do
GRECO) é que a corrupção mantém-se (em Portugal) a um nível
relativamente alto». Em favor da solidez da sua tese, os peritos do
GRECO citam números da Polícia Judiciária, referentes a investigações
efectuadas em 2001, que levaram a julgamento 3 casos relacionados com
corrupção na Administração Pública central, 17 nas autarquias, 3 em
tribunais, 17 na polícia, 1 na Segurança Social, 46 em laboratórios
farmacêuticos, 2 em institutos públicos, e 6 na Direcção-Geral de
Viação.
A
primeira das fontes de corrupção portuguesa é, obviamente, uma
Administração Pública, nos seus mais diversos níveis, degradada pelo
abandono dos critérios de gestão e promoção assentes na competência
e no mérito, e ainda por uma ultraburocratização – ao ponto de a própria
Constituição da República portuguesa, no artigo 217.º, conter um
apelo patético à desburocratização – que longe de balizar condutas
e regras, aumenta o poder arbitrário dos funcionários. A burocracia,
ou o «imposto assassino», como uma vez foi tocantemente designada por
um empreiteiro de construção civil, num debate televisivo, torna tão
difícil qualquer relação com os serviços públicos, que abre caminho
para o chamado, nos países anglo-saxónicos, «speed-money», ou seja,
só o suborno ao funcionário desbloqueia o problema. Por outro lado, a
falta de formação profissional, de estímulos profissionais, a
progressão automática e uniforme das carreiras, a desvalorização do
zelo e do mérito, levam à progressiva substituição do interesse público
por critérios de interesse pessoal e partidário. Mais ainda quando os
directores-gerais, os homens forte da estrutura, o topo dos cargos da
Função Pública, alcançam os seus lugares quase totalmente através
de nomeação partidária, o que cria um espírito mercenário e de
obediência ao partido, que elimina qualquer ideal de dever de serviço
ao cidadão. Refira-se a propósito que a mais recente proposta de
reforma da Administração Pública, da autoria do governo em exercício,
é omissa em relação a este ponto, absolutamente vital para reduzir os
níveis de corrupção. Pelo contrário, o actual governo tem a intenção
de aprovar legislação no sentido de as equipas dirigentes da Função
Pública serem de escolha directa do respectivo director-geral.
Uma
segunda fonte de corrupção radica na utilização perversa do seu
cargo por parte de alguns decisores da Administração Central e Local
– ministros, autarcas, secretários de Estado e directores-gerais –
assente na oportunidade de por vezes fazerem uso venal do seu poder,
especialmente na adjudicação e contratação de serviços e empresas,
sem que se verifique uma detecção imediata pela fiscalização.
Quando
estas adjudicações e contratações não são feitas segundo critérios
de competência, isenção e respeito pela concorrência, mas sim de
clientelismo, de interesses privados, e especialmente políticos, com os
mais diversos objectivos, o Estado, através de certos representantes,
assina contratos cujas cláusulas beneficiam unilateral e excessivamente
os grupos privados, e jamais a suposta negligência ou falta de zelo que
preside à sua assinatura é penalizada através da respectiva
responsabilidade financeira. O laxismo institucional, neste campo, tem
sido tal que a acusação, recentemente produzida, no caso do hospital
Amadora-Sintra, normal num Estado de Direito, surge como algo de inédito
(ver cápsula «o dinheiro público e o Amadora-Sintra»).
O
problema é que, sem nos referirmos agora ao caso específico envolvendo
o hospital Amadora-Sintra, mas sim na generalidade, há casos em que,
aparentemente, tudo é feito de modo legal e escrupuloso, mas os
contratos realizados violam gravemente princípios públicos, até o
dever de zelo, já que se verifica por vezes que o dinheiro gasto não
corresponde de maneira alguma ao serviço prestado.
Uma
terceira fonte de corrupção vem das grandes necessidades financeiras
dos partidos, muito para além dos orçamentos permitidos por Lei. Os
partidos, hoje, ao mesmo tempo que perdem representatividade junto dos
cidadãos, sendo obrigados a ocultar a falta de militância com o
marketing, transformam--se em gigantescas máquinas de absorção de
dinheiro, especialmente para a remuneração dos seus funcionários e
actividades quotidianas, e para a organização de campanhas eleitorais
apelativas e omnipresentes durante o tempo que duram.
Estas
necessidades financeiras constantes e pesadas geram uma pressão
permanente no mercado das obras públicas e adjudicação de serviços,
só para referir os mais óbvios, o que acaba por liquidar relações
transparentes entre o Estado e os privados. Ou seja, por outras
palavras, os partidos são, simultaneamente, fonte e objectivo da corrupção,
se não forem auditados correctamente. Isto é, fonte porque a exigência
do desvio de verbas despoleta o acto corrupto, e objectivo porque o acto
é cometido justamente com o intuito de obter uma verba secreta para uma
acção partidária. Diga-se que, em muitos casos, este é apenas o começo
do circuito, que muito rapidamente acaba por permitir o desvio de verbas
para as contas pessoais de dedicados militantes e dirigentes.
O
deputado europeu social-democrata Pacheco Pereira, numa crónica
publicada em Julho de 2003 no diário Público, toca na ferida, ao
referir que «a maioria dos cidadãos associa a política à corrupção,
e se a acusação é genérica e injusta para muitos políticos, é
alimentada pela falta de cuidado, to say the least, com que os responsáveis
políticos lidam com situações obscuras envolvendo dinheiro no âmbito
dos partidos e do Estado. Esta questão (...) tem a ver com os costumes
no trato com dinheiro que são politicamente admissíveis».
O
mercado das obras públicas e serviços é, por si só, um manancial de
oportunidades de corrupção, também por omissão de fiscalização
adequada.
Para além
do que é acima referido, a sobreposição, profusão e confusão
legislativa, aliada à densidade da burocracia camarária e da
Administração Central, para além de interesses venais pessoais dos
decisores, tornam extremamente movediço este mercado, abrindo caminho a
práticas de cambão e viciação de concursos, determinados pela avidez
do clientelismo e dos interesses ocultos.
Obviamente,
se assim acontecer, é o cidadão a sofrer as consequências. Segundo o
diário britânico Financial Times, «subornos resultam na atribuição
dos maiores concursos a empresas incapazes de realizar eficientemente o
trabalho, e a um custo superior para o erário público».
O
financiamento do futebol é também uma possível fonte de corrupção a
considerar, dada a popularidade procurada por políticos e autarcas
através de financiamentos, doações e outros expedientes.
Essencialmente, isto acontece porque o futebol gera grande simpatia
entre o eleitorado, e é uma força centrífuga, que atrai a si os
empreiteiros e os seus negócios com as autarquias, envolvendo terrenos
e construções. O futebol, especialmente a nível local, é uma
actividade tão marcante para a vida social e política, e gera por sua
vez tantas possibilidades de negócio, que, para muitos decisores, acaba
por ser, simultaneamente, um irresistível campo de injecção de
enormes verbas desviadas de outros fins, e de recolha de novamente
enormes outras verbas para utilização pessoal e partidária. A tríade
autarquias, futebol e construção civil tem produzido clientelismos
poderosos, em muitos casos assente em negócios obscuros. Aliás, em
certos círculos académicos portugueses, que infelizmente não
partilham publicamente as suas ideias, alguns clubes de futebol de
dimensão regional ou local são já encarados como «os off-shore dos
pequeninos», dado que permitem, por vezes, e em certos casos, as mesmas
vantagens de confidencialidade e rotação de dinheiro oferecidas pelos
referidos paraísos fiscais.
A
instalação de fenómenos crónicos de evasão fiscal, por parte de
particulares e empresas, é outra das grandes fontes de corrupção
portuguesas. A tentação de não pagar impostos de forma sistemática
faz com que a tentativa de aliciamento dos funcionários fiscais seja
permanente e ousada, criando, em certos pontos, uma lógica da máquina
fiscal em que esta vive já de comportamentos desviantes,
transformando-se numa fonte de corrupção bastante activa.
Indo
mais ao pormenor, quando a evasão fiscal se torna uma possibilidade de
fácil concretização, apenas dependente do fiscal ou do funcionário
competente, gera-se uma impunidade geral, que anula completamente os
princípios de equidade da Administração Fiscal. Rapidamente é
engolida a distância que vai da corrupção até aos fenómenos de
extorsão, praticados pelos próprios funcionários, gerando-se algo
muito para além da pressão normal da evasão fiscal: um fenómeno
organizado, duradouro, complexo e lesivo, com origem nalguns a quem
incumbe acautelar os interesses do Estado.
Por último,
o não funcionamento das instâncias de controlo e fiscalização
efectivos ao nível dos vários serviços, porque demasiado formalistas,
geram, por si próprios, um clima de impunidade extremamente aliciante
para o candidato à corrupção, porque permitem que os fenómenos de tráfico
de influências e de corrupção adquiram uma tal exuberância e solidez
de cumplicidades, que torna praticamente impossível combatê-los pela
via criminal.
Identificadas
assim o que nos parecem constituir as maiores fontes de corrupção na
democracia portuguesa actual, é diagnosticável uma lógica de corrupção
que alimenta e se alimenta do mau funcionamento de sectores públicos
vitais, gerando uma série perfeitamente definida de zonas de risco,
entendidas como as que concentram factores susceptíveis de originar
mais facilmente situações de corrupção, tráfico de influências e
peculato, fraude e branqueamento dos respectivos proventos. Ou seja, de
gerarem um poder subterrâneo, ameaçador para a democracia.
Localizam-se nas autarquias (especialmente devido à concentração de
poderes nos presidentes de câmaras), no futebol, nos financiamentos
partidários incontrolados, na Administração Fiscal, e em todo um
vasto conjunto de serviços públicos de contacto directo e intenso,
pela sua especial importância, com os cidadãos, que vão das Polícias
ao Serviço de Saúde, passando pelas Direcções de Viação.
Chamamos-lhe
zonas de risco pela potencialidade de práticas de corrupção,
estimuladas pela profusão legislativa, pela falta de transparência,
pelo deficiente funcionamento dos serviços e burocracia, pela reprodução
de métodos de trabalho e decisão incorrectos, e pela ausência de
fiscalização, e por essa razão devem constituir prioridade da
investigação criminal e dos tribunais, a menos que permaneça a
indiferença perante o progressivo colapso dos serviços situados nestas
zonas.
Dito de
outro modo, a menos que se permita o desenvolvimento irreversível da
corrupção, do tráfico de influências, da fraude e do branqueamento
dos seus proventos criminosos. Porque, afinal, o cenário acima traçado
não é mais do que a pormenorização das teias da economia paralela,
através das quais o decisor público apadrinha um desenvolvimento económico
viciado, promovendo uma miragem de democracia que na realidade apenas
favorece os grupos que aceitam o pacto negro, onde a livre concorrência
dá lugar ao suborno, e a competência ao favorecimento. A síndrome de
uma corrupção endémica que é produto da pobreza e gera ainda mais
pobreza. Síndrome que origina custos adicionais para os consumidores e
para as empresas, em tudo o que consomem ou produzem, das autoestradas
aos imóveis, trava o desenvolvimento da sociedade e da economia e
interfere nos mais altos mecanismos de representatividade dos cidadãos,
quando os interesses privados se sobrepõem a todos os outros, o que é
talvez a mais grave consequência deste mal contemporâneo.
Feito
o enquadramento teórico e histórico da corrupção, tentaremos nas páginas
seguintes mostrar como ela se concretiza na vida política e económica
do nosso país."
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