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Vamos Remar !

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Quando em Janeiro de 2020 publicamos uma reportagem sobre a experiência como remador do nosso director, chuveram pedidos para mais informações sobre o remo. Embora Alvalade seja campo e não rio ou mar, na redacção demos aos pedidos que recebemos a devida atenção. Fomos reunindo material para uma nova e mais alargada publicação.

Pouco depois declarou-se a pandemia (2020-2021), o que obrigou a uma contenção na prática de desportos colectivos, o que afectou forçosamehte os clubes com remo. Em 2022 foram retomadas as actividades, e lá convencemos (pressionamos) o nosso director a voltar ao remo, agora noutro clube de Lisboa: a Associação Naval de Lisboa. A verdade é que lhe tomou o gosto, como se verá.

Filosofia do Remo

 

Kandinsky, Improvisation 26 (Rowing), 1912

John Frohnmayer, no seu já famoso livro Socrates The Rower. How Rowing Informs Philosophie (2017), num estilo que lhe é próprio, chamou à atenção para a sintonia entre a filosofia e o remo (rowing). A filosofia é inseparável de uma reflexão sobre quem somos, a nossa relação com o cosmos e os nossos semelhantes. O remo como desporto colectivo, desperta-nos para as questões essenciais da filosofia.

A primeira questão é de natureza ética: os principios (universais) que devem nortear a nossa relação com os outros. Numa embarcação o remador tem que remar, mesmo com quem rivaliza no dia-a-dia, reconhecendo-o como igual, ambos tem que se esforçar no percurso para atingirem um objectivo comum. David Hume afirmou que estes remadores de forma natural, estabelecem uma convenção não escrita sobre a justiça. Uma vez que todos se encontram no mesmo barco (sociedade), não faz sentido ter como objectivo punir quem rema mal. É do interesse de cada um que haja consenso entre os remadores, para que o barco continue o seu percurso, garantindo que cada um deles aplica as suas capacidades e força nas remadas, com a máxima satisfação. Cada um reconhece que lhe é útil cumprir a sua parte, e dessa forma todos conseguem atingir o objectivo comum. É evidente que as situações não páram de mudar. Se a embarcação aumenta, assim como o número de remadores (complexidade da sociedade), é do interesse de todos que as convenções não escritas o sejam, nomeadamente para o melhor conhecimento de todos. É também importante que que cada um se comprometa a respeitar as convenções que a experiência mostrou ser úteis para todos. A função do timoneiro, enquanto governador da embarcação, é fazer justiça, isto é, aplicar o que foi consensualizado pelos remadores em função da experiência e dos saberes adquiridos. A justiça é assim uma construção histórica, elaborada num contexto social quotidiano.Os governos surgiram da necessidade de coordenação de sociedades mais complexas, o que pode ser facilmente observado no remo.

O remo proporciona uma tomada de consciência que todos estamos no mesmo barco da vida. O Remo é um trabalho de equipa, em que todos os que o praticam se envolvam física e emocionalmente numa acção para superar a resistência da água. É uma acção que exige coragem e firmeza nos seus propósitos, sabendo que só o podem alcançar se todos confiarem em todos, formando uma comunidade, onde a ajuda mútua é fundamental para realizarem o passeio. A confiança é essencial como na Democracia. A confiança é de natureza relacional, concretiza-se quando existe acordo sobre certas ideias, saberes ou práticas. Não pode ser generalizada, sob pena de grandes desilusões. Um remador pode confiar na remada do colega, mas não na sua palavra. Em domínios especificos, concretos, pode haver consensos, fora deles é improvável. Confiamos no piloto do avião em que viajamos, mas ignoramos se podemos confiar o estado do avião. A nossa confiança vai para as garantias que a companhia de avião nos oferece. O mesmo se passa na Democracia, sempre oscilante entre a confiança e a desconfiança sobre o governo. Max Weber, dirá que na Democracia Representiva, os consensos são impossíveis, logo a desconfiança está sempre presente. A minoria que controla o poder merece-nos, numa dado momento, mais ou menos confiança. Apenas na democracia directa, isto é, sem intermediários, como ocorre no remo, pode haver verdadeira confiança, porque assenta no consenso dos remadores.

A palavra passeio, na sua aparente inutilidade (Aristóteles), esconde afinal como na filosofia os valores que transporta. Ortega y Gasset viu no esforço desportivo, sobretudo no remo de lazer (não competitivo), aquilo que separa o homem do animal, a essencia da própria humanidade. Para se usufruir de uma vida bem vivida é preciso um esforço idêntico ao empregue pelo desportista, um esforço auto-imposto, para desfrutar de tempo em coisas inúteis, como a filosofia, as artes plásticas, a literatura, a dança, a música, o convívio entre amigos ou a simples contemplação. Luxos que ao olhar de alguns são extravagâncias.

Remadores em Yerres (1877), pintura de Gustave Caillabotte

A segunda questão é de natureza cognitiva. Em pouco tempo, o iniciante do remo, percebe verdadeiramente que o remo não é desporto mecânico, cuja repitação dos gestos sincronizados parece indiciar a um observador. O remador tem que estar permanentemente atento a tudo o que os seus vários sentidos lhe transmitem, internos e externos. Desde a fadiga do corpo, ao estado do tempo, o equilibrio da embarcação até à correcta ou incorrecta colocação do remo na água, são percepcionados por sensações corporais, epidérmicas, tácteis, olfativas e auditivas. O remador de costas bem direitas não tem os olhos na pá que penetra na água na vertical e a pressiona, o seu olhar fixa-se no timoneiro da popa. Ninguém tem uma visão completa, mas apenas uma perspectiva. O homem do leme não observa o que está atrás de si, tem que confiar no que lhe dizem os remadores. Estes não sabem para onde vão, observam apenas de onde vêem, essa é a sua perspectiva (Husserl). O conhecimento se a remada foi correcta ou falsa, obtem-no pelo som na travinca, advinham pela postura corporal, e em último lugar pela força imprimida no deslizar da pá.

Outra das grandes questões que o remo coloca é de natureza existêncial. As conversas sobre o passeio a realizar, nomeadamente sobre o estado embarcação que a todos transporta, desperta-nos para a consciência que todos partilhamos um mesmo barco, chamado Terra, que se dirige para um lugar insondável. Apesar disto, desde que nascemos, somos chamados a prosseguir a viagem, a enfrentar os obstáculos, mesmo quando não encontramos um sentido (direcção) naquilo que fazemos (Albert Camus). O egoismo não tem lugar no remo. Ninguém pode ficar de fora, eximir-se a contribuir para a realização do objectivo comum, ou agir de modo a fragilizar o companheiro de bordo. Uma viva metáfora de como deve ser um comunidade solidária.

Regata em Argenteuil (1872), Claude Monet. Um pintor fascínado pela água.

Os percursos dos remadores fazem-ser sobre o elemento primacial - a água - , povoado de mitos e ressonancias de memórias passadas, próprias ou emprestadas. Tales de Mileto fez da água o elemento inicial do qual tudo provém. Heraclito serviu-se da água para nos dizer que tudo está em constante mudança. Gaston Bachelard dá-nos conta da multiplicidade de formas como é descrita e simbolizada em todo o mundo, umas vezes exaltada como fonte da vida, cantada como calma e prazenteira, para outras surge como insubmissa, incontrolável e destruídora. O seu toque provoca as mais diversas sensações. O remo oferece este contacto intenso com a natureza e as suas ressonâncias oníricas. Permite-nos também a cada instante, numa embarcação que se eleva sobre a água, tomar consciência da nossa fragilidade perante a natureza e, sem grandes extrapolações, sobre a nossa insignificância face à magnitude do cosmos (Cassirer).

A acção colectiva exercida durante a remada, obriga a uma suspensão temporária dos nossos problemas quotidianos. A mente foca-se num objectivo colectivo, cujo contributo individual equitativo é fundamental para superar os desafios que a resistência da água levanta, ao fazer deslizar uma embarcação. O movimento sincrónico espelha o contributo do remador alheio a qualquer recompensa individual. No remo não há heróis, todos ganham ou todos perdem.

As conversas depois do passeio, em que são analisadas a forma como foi enfrentado o oponente (a água), revela outra singularidade do remo: o oponente que encontraram pela frente não foi outros seres humanos ou animais, mas a água. Um elemento incolor e inodoro, mas matricial. A natureza é no remo preservada, respeitada como oponente e usufruida como beleza. A metáfora aponta-nos agora para a superação dos obstáculos que a humanidade, através do apoio mútuo (Kropotkine), foi fazendo deste a sua origem. Há muito para dizer num simples passeio sobre a filosofia do remo .

O Remo na Arte

Max Schmitt in Single Sculls (1871), pintura de Thomas Eakins. Artista norte-americano, praticante de remo e de outros desportos ao ar livre, fez-se representar neste quadro a remar, em segundo plano.

Nas Margens do Marne (1899), pintura de Ferdinand Joseph Gueldry (1858-1945). Foi um excelente remador, fundador da Société Nautique de Marne, em Joinville-le-Pont. Desde 1878 as suas obras retratam frequentemente cenas com remadores, regatas e outros temas nauticos.

Regata em Joinville. Partida (1881), pintura de Ferdinand Joseph Gueldry. O detalhe com que representou as embarcações permite acompanhar a sua evolução tecnológica durante várias décadas.

Os Remadores (1911), pintura Natalia Goncharova (1881-1962). Esta artista integrou o movimento Der Blaue Reiter - O Cavaleiro Azul (1911-1914) em Munique. Este movimento de caracteristicas expressionistas contestava o racionalismo, o realismo, procurando uma relação fortemente instintiva e mistica com a natureza. O azul para Kandinsky era a cor da espiritualidade, quanto mais forte maior o desejo pelo eterno.

Os Remadores (1912), pintura de Manuel Losada (1865-1949). As "regatas de traineras" realizam-se desde 1879, na Baia de Concha, em San Sebastian no País Basco (Euskadi). Eram barcos eram de pesca em mar aberto, com uma tripulação de 12 ou 13 homens, com timoneiro (patrão). A pintura de Manuel Losada realça a origem piscatória desta regata desportiva, numa registo quase etnográfico.

Trazendo o Barco (1933), ilustração de Sybil Andrews (1898-1992). O remo encontrou na ilustração algumas das suas melhores representações. O sincronismo dos remadores permite aos artistas anular os traços distintivos de cada um para evidenciar o trabalho em equipa e o movimento através da repetição dos mesmos elementos.

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