Coisas
que devem ser ditas (para Manuela Ferreira Leite), José Pacheco Pereira
(eurodeputado do PSD e Vice-Presidente do Parlamento Europeu)
1. Esta crise política foi completamente inesperada. Bom, é da
natureza de algumas crises. Mas esta foi inesperada por um único e
exclusivo factor subjectivo: deveu-se a uma decisão de um homem, que
introduziu efeitos de profunda perturbação na vida política
portuguesa. O homem foi-se embora, os efeitos estão connosco.
2. O compromisso de Durão Barroso com os portugueses não era
“soft”, era “hard”. Era forte e feio e duro. Foi feito numa eleição
difícil, ganha à tangente, foi feito pelo risco de uma coligação que
tinha e tem os seus problemas. Foi feito numa situação que o
primeiro-ministro sempre caracterizou como sendo de emergência
nacional, gerada pelas políticas de descalabro do PS. Foi feito para um
Governo que ofereceu dificuldades aos portugueses, dizendo-as
absolutamente necessárias, patrióticas, e que sempre disse que não
governava para eleições. Foi feito sem recuo.
3. O convite a Durão Barroso é resultado de fraquezas
partilhadas e não da força da Europa. Essa fraqueza já lá estava,
está no senhor Chirac, a chegar ao fim dos seus dias de poder, está no
senhor Schroeder, batido como ninguém nas últimas eleições
europeias, está no senhor Blair, enfraquecido pelo Iraque. Está no último
decénio de contínuo défice democrático da Europa, está nessa
obra-prima de mistificação política que é a “Constituição”
europeia, está no desinteresse europeu cada vez maior pelo Parlamento,
está nas derrotas quase inevitáveis dos referendos (Dinamarca,
Holanda, Suécia) das posições mais europeístas, está na inanidade
flagrante da política externa e de defesa europeia, está nos impasses
crescentes que mostram a incapacidade da Europa para resolver os seus
problemas colectivos. Durão Barroso foi escolhido porque todos estes
impasses impedem uma outra escolha. Não tem sentido comparar esta situação
com a de Delors, porque pura e simplesmente Delors era francês, podia
sempre ter a França com ele, e a Barroso não adianta ter Portugal, se
quiser ultrapassar as condicionantes de “mínimo denominador comum”
do seu convite.
4. Dito isto, o convite é também importante e pessoalmente
honroso para Durão Barroso. O facto de ter esta origem e estas circunstâncias
não minimiza o outro facto, que é os chefes de governo europeus
considerarem que ele é capaz para um posto tão difícil como o de
presidente da Comissão. Isso é mérito próprio. De qualquer modo, bom
sucesso.
5. Sugerido o convite, José Manuel Durão Barroso devia ter dito
não. Devia ter pensado no seu azar de estar no local errado (no Governo
português), no tempo errado (depois de uma derrota eleitoral, a meio do
mandato, sem estabilidade na sucessão), e, com legítima pena e grande
sacrifício pessoal, ter dito não. Devia ter dito: “Honra-me muito o
vosso convite, mas não tenho condições para aceitar neste momento difícil
do meu país.” Devia ter pensado: “Os que me têm apoiado nesta
tarefa árdua de pôr em ordem o meu país não podem ser
abandonados.” Devia ter pensado: “Fiz promessas tão claras aos
portugueses que não tenho face para agora me ir embora, todos vão
pensar que fugi.” Devia ter pensado e certamente pensou. Mas “José
Barroso” acabou por dizer sim.
6. José Barroso poderá fazer alguma coisa por Portugal, mas
muito pouco. Se ultrapassar este pouco, haverá controvérsia europeia,
forte e feia. O lugar de presidente da Comissão é literalmente
patrulhado, em primeiro lugar, pelos primeiros-ministros europeus,
depois pelo Parlamento Europeu, que entende que deve parlamentarizar a
Comissão, e ainda pela imprensa mais hostil à UE, que a há muita. A
sua margem de manobra pró-portuguesa é escassa. Se se queria reforçar
a posição e os interesses de Portugal, era na luta por um bom pelouro
para o comissário português, na escolha de um bom comissário, e na acção
de um primeiro-ministro português no Conselho, que se conseguia. É aí
que se jogam quase todos os interesses nacionais legítimos e com condição
de eficácia. Neste jogo, que vai agora começar, o facto de o
presidente da Comissão ser português pode ser contraproducente, jogar
contra uma margem de negociação forte na distribuição de pelouros.
Quem conhece a Europa real sabe que ninguém dá a qualquer país almoços
grátis, e Portugal já comeu uma parte do almoço a que tinha direito.
Dirão eles.
7. Depois, a herança que Barroso deixou ao país chama-se Santana
Lopes, um partido moldado à imagem de Santana Lopes, um governo PPD-PP,
muito mais à direita que o que Barroso permitia ser o seu, e uma inflexão
de política que inevitavelmente (sublinho, inevitavelmente) vai dar
cabo do pouco que se tinha conseguido. Aqui entra um logro e quase uma
traição. Barroso fez grande parte da sua carreira partidária contra
Santana Lopes, muitos dos seus apoios vinham de pessoas que consideravam
que ele era, no partido, a melhor barreira contra um tipo de liderança
populista que contrariava a identidade política que pensávamos ter Durão
Barroso. Para muitos, era claro que votar Barroso era votar contra
Santana Lopes, e se havia “barrosismo” era este o seu sentido político.
8. E por isso me sinto traído, como aliás muita gente que
talvez não o diga com esta clareza. Porque há várias coisas de que eu
tenho a certeza. Eu não votei nas últimas legislativas no Governo que
aí vem. Eu não votei nas últimas legislativas numa coligação PSD-PP,
muito menos num governo PPD-PP. Eu não apoiei Durão Barroso para me
sair Santana Lopes. O voto, mesmo para os intelectuais e
“comentaristas”, como se diz agora com desprezo, não tem nenhuma
sofisticação especial. O voto, aliás, tem essa virtude de ser simples
e inequívoco, uma escolha. E eu, como muita gente no PSD e no país,
nunca fiz a que agora me querem impor. Este é o “golpe de Estado”
de que fala Manuela Ferreira Leite. Tem a ver com a substância, não
com os estatutos.
9. Qual é o problema de Santana Lopes?, pode-se perguntar.
Respondo por mim. Nada me move pessoalmente contra Santana Lopes, que
tem até qualidades pessoais que me agradam, e de que não tenho queixa
qualquer no trato, mas tudo me move politicamente contra Santana Lopes.
Não temos, aliás, que nos surpreender com o que será Santana Lopes
primeiro-ministro, porque ele antes de o ser, já o foi. Foi-o, com toda
a convicção, num concurso de faz de conta, num programa de televisão
chamado Cadeira do Poder, de Albarran, ganho aliás por Torres Couto.
10. A palavra “populismo” é correcta para caracterizar a sua
acção política, embora ela já seja usada de forma tão genérica que
parece que são populistas todos os que ganham eleições. O seu
populismo vê-se no conjunto de toda a sua acção política, desde a
Secretaria de Estado da Cultura e nas funções políticas e autárquicas
que exerceu, e quase sempre com os mesmos resultados: pouca obra, muito
espectáculo, clientelas pessoais dedicadas, alimentadas com benesses
dirigidas a alvos muito específicos, de preferência escolhendo
sectores mais vocais (como no caso do teatro), habilidade comunicacional
associada a um investimento muito cuidado na comunicação social, no
marketing, na publicidade, nenhuma correlação entre o dinheiro gasto e
a obra realizada. No meio de tudo isto, uma forte personalização da acção
política, apoiada essencialmente na televisão, onde Santana Lopes sabe
que os “apareçómetros” são transformados em “barómetros”.
11. O problema do populismo é que gera mau governo. Os
populistas governam mal, e não é por razões conjunturais, é por razões
estruturais: o seu populismo impele-os para políticas espectaculares,
pouco consistentes e normalmente caras. Um exemplo típico do que estou
a dizer é o caso do Parque Mayer, onde todos os defeitos de uma governação
populista emergem com clareza. Santana Lopes prometeu em campanha que
iria renovar o parque Mayer e devolvê-lo à cidade, assente num
investimento no teatro de revista, destinado a “salvá-lo” da extinção.
Pode-se pôr em causa o gosto de Santana Lopes por uma forma de teatro
popular, que conheceu um processo de decadência natural e de mudança
de públicos, ou de novo a lógica clientelar no teatro, mas não é
preciso sequer ir por aí.
12. A sucessão do que se passou diz tudo sobre o “modus
operandi” de Santana Lopes. Em Março de 2002, garantia ao “Correio
da Manhã” que o “Parque Mayer estará a funcionar em Agosto”.
Depois, nesse Setembro, com base no projecto do arquitecto Norman Foster,
que haveria um novo Parque Mayer em 2004. Depois, apareceu a hipótese
do jogo, do casino, e novo anúncio em Outubro de que as obras começariam
em Dezembro de 2002. Depois, começou a saga do casino. O casino pagaria
a renovação do Parque Mayer, mas depois verificou-se que havia mil e
uma dificuldades urbanísticas e legais. O casino afinal ia ser
“enterrado” no parque, em Fevereiro de 2003, e iria para o Cais do
Sodré em Abril de 2003, e depois para a Feira Popular. Saliente-se que
grande parte destes anúncios, com títulos de caixa alta, é do próprio
Santana Lopes. Ainda não está em lado nenhum.
13. De repente, e num gesto muito típico do populismo, Santana
Lopes tira do bolso a decisão de ir buscar o arquitecto Frank Ghery.
Como dizia a “Visão”, Ghery foi o “pacificador” e os nossos
intelectuais e artistas calaram-se, como habitualmente acontece quando
se gasta dinheiro e se fazem coisas emblemáticas do seu (deles) valor
simbólico. Em finais de 2002, Santana anuncia a contratação de Frank
Ghery e o projecto para Maio de 2003. Ninguém fez a pergunta óbvia:
onde é que se ia buscar dinheiro? Se tivessem ido ao Guggenheim de
Bilbau, mesmo que fosse só de fora, teriam alguma dúvida de que as
espectaculares esculturas urbanas do arquitecto seriam outra coisa que
caríssimas? Em Abril de 2003, já o que se sabia do projecto de Ghery
contrariava tudo o que fora dito, e as promessas inicias de Santana
Lopes. Já os teatros afinal podiam ir para a Feira Popular, o Casino
idem. “Custos elevados do projecto impedem a fixação de lojas e
escritórios”, escrevia a “Capital”. Depois, finalmente,
descobriu-se que o projecto de Frank Ghery era caro. Em Outubro de 2003,
titula a “Capital” “Santana Lopes sem dinheiro para arquitecto”.
Hoje, em Junho de 2004, continua tudo bloqueado.
14. Tudo o que caracteriza uma política populista está aqui
retratado: decisões pessoais erráticas, apoiadas mais na necessidade
de fazer anúncios à imprensa ou contrariar opositores do que no estudo
dos problemas, encomendas apressadas, mudanças de última hora,
encravamento geral de todo o processo por falta de atenção às condições
legais e financeiras. Alguém tem uma ideia de quanto tudo isto já
custou ao Município de Lisboa, sem qualquer resultado palpável?
Certamente muitos milhões. O resultado vai ser a mais cara fotografia
jamais feita em Portugal, a que ilustra o livro de Santana Lopes sobre a
“cultura”, Santana Lopes e Ghery mudando Lisboa. É assim que eu não
quero que Portugal venha a ser governado. É assim que o será? Não
sei. Está escrito nas estrelas