Antologia do Lixo de Lisboa
(Nota Cultural)
As
lixeiras e a falta de higiene em Lisboa são mundialmente conhecidas.
Desde o século XVI que muitos estrangeiros que nos visitaram ficaram
impressionados com a porcaria nas ruas da cidade. A CML não podia, como
é óbvio, ignorar esta tradição alfacinha, é por isso que contra todos os
protestos dos moradores mantém a tradição de permitir a acumulação de lixo na freguesia de
Alvalade.
A tradição em Lisboa continua a ser aquilo que
era. Desta forma se alimenta também ratos, ratazanas e todo o tipo de
bicharada. Em toda a Europa não existe uma capital mais ecológica.
"Cristão, muçulmanos e Judeus na Lisboa Medieval"
"Razão para tamanha agloração (em Lisboa) era que não havia entre eles nenhuma forma de entrave, pelo que cada um se dava a lei que queria, de tal modo que de todas as partes do mundo, os maiores viciados para aí convergiam como para uma sentina, viveiro de toda a licenciosidade e imundice", Cruzado Inglês R., 1147.
Calhandro, século XIX. Museu da Cidade
Calhandros e Calhandreiras
Entre os séculos XV e XIX, a população negra (escrava) de Lisboa era usada na limpeza das imundices da cidade. No século XVIII, os despejos eram feitos pelas calhandreiras que transportavam até ao Rio Tejo potes altos, os calhandros, com com dejetos. O Senado de Lisboa, em 1757, atribuiu a cada bairro negras (calhandreiras) para efectuarem o serviço de limpeza. Nas pausa deste durissimo serviço, a conversas entre as calhandreiras, tornou-se sinónimo de bisbilhotice, coscuvilhice. Exposição: Lisboa Plural, 2019, Museu da Cidade.
Gravura, artista anónimo, 1826. Uma despeja o calhandro no Rio Tejo enquanto a outra descansa. Museu da Cidade
Ratos de Qualidade
"Uma viagem em Portugal ou em Espanha
equivale a uma campanha militar: falta de víveres, emboscadas, perigos,
incomodidades, acampamentos. Encontra-se de tudo menos a glória.
Acreditava que os Portugueses, só que fosse pela
inimizade que sentem pelos Espanhóis e pelo prazer de estar em contradição
com os seus vizinhos, deviam ser mais asseados, mais requintados e estar
mais comodamente instalados do que eles. Ai de mim! Eles são em tudo os
rivais dos Espanhóis.
Para vos dar uma ideia das estalagens de Portugal,
dir-vos-ei que a noite passada, na Moita, os ratos devoraram uma grande
galinha da Índia que eu tinha levado para o meu quarto, e da qual nem
sequer deixaram os ossos. Os nossos lobos são menos vorazes que os
ratos das estalagens deste País.".
José Pecchio, carta datada
de 9 de Fevereiro de 1822, publicada em Cartas de Lisboa-1822.
Livros Horizonte. Lisboa.1990
Quando os cães estavam ao
serviço da CML
"Jorge Landmann, um oficial inglês que esteve em Portugal durante as invasões francesas, conta, em Historical, military and
pictures que observations in Portugal, publicada em Londres, em 1821, que a
convenção de Sintra salvou a vida a muitos cães! E explica:
Junot, para terminar com a perigosa e
incomodativa situação dos cães andarem de noite, pelas ruas de Lisboa, lutando,
ladrando e uivando, ordenou a sua matança. Muitos foram mortos e mais seriam se
o general francês, após a assinatura daquele tratado, não se tivesse retirado do
país.
Muitos portugueses - acrescenta Landmann -
consideraram aquela ordem não só um acto cruel mas também prejudicial. Mortos os
cães, desapareciam os funcionários da limpeza urbana. Para sobreviverem, aqueles
animais semi-selvagens devoravam os detritos e imundícies que empestavam as ruas
da capital.", nota de rodapé de Manuela Simões, in Cartas de Lisboa-1822, de
José Pecchio. Livros Horizonte. Lisboa. pp. 36-37.
Um historiador insuspeito, Albino Lapa,
descreve-nos desta forma Lisboa em fins do século XVIII: "As casas estão sujas;
os piolhos, os percevejos e insectos de toda a espécie tornam a estadia
insuportável (para viajante).As ruas estão cobertas de imundices, sem quaisquer
luzes, a não ser as que iluminam algumas Virgens; infestadas de cães, que passam
toda a noite a ladrar; só Lisboa tem mais de 80.000 cães nas ruas; estão
inundadas de ladrões, de dejectos de bacios de noite, de cães e de polícias", in
História da Polícia de Lisboa, vol.II.pp.23-24.
Lá Vai...
Existe uma longa tradição lisboeta de lançar na rua
todas as imundícies, o hábito não é de hoje. Esta prática está amplamente
documentada e foi sempre um dos aspectos que mais chocam os estrangeiros que nos
visitam.
"De dia para dia Lisboa ganha em beleza e possui
habitações de agradável aspecto. Não obstante, Lisboa nunca será uma bela cidade
enquanto não estiver limpa de imundícies e dotada de lanternas para iluminação
das ruas durante a noite. As casas não possuem latrinas e são as pretas que
transportam das habitações os potes dos despejos. Porém quando o tempo ameaça
aguaceiros, despejam-se os dejectos da janela à rua, o que torna as ruas de
Lisboa pouco transitáveis durante a noite, porque além do nojo de receber um tal
baptismo ainda por cima se corre o perigo de ser morto pelos potes que muitas
vezes baldeiam à rua com o seu conteúdo.
Um amigo meu, tendo estado retido no palácio real
até muito tarde, ao sair, debaixo de chuva, foi presenteado com este mimo pelas
damas da corte que muito embora sejam de uma beleza perfeita aquilo que delas
lhe deram não cheirava mais a almíscar que o aroma com que o granadeiro das
guardas-francesas perfumava o velho Delfim. O meu pobre amigo, ao tirar um lenço
da algibeira da casaca onde distraidamente havia guardado a bolsa, deixou-a cair
sem dar por isso e assim perdeu quarenta moedas de ouro e um belo diamante que
nela guardava. Levará muito tempo para esquecer o presente das damas de honor da
rainha de Portugal. Tendo narrado a sua aventura ao Secretário de Estado, este
ministro teve a bondade de lhe conceder uma indemnização, mas o diamante a bolsa
nunca mais as viu."
Charles Fréderic de Merveilleux, Memórias
Instrutivas sobre Portugal (1723-1726), in O Portugal de D. João V visto por
três forasteiros (1989). Lisboa. Biblioteca Nacional. Série Portugal e os
Estrangeiros.
As
Históricas Lixeiras do Campo Grande
Há hábitos
que resistem ao tempo, atravessam gerações e parecem ser imunes aos
contextos históricos. Um dos nossos colaboradores descobriu, numa das
bibliotecas do bairro, um destes casos singulares.
O olissipógrafo
Ralph Delgado, publicou, em 1969, uma pequena mas muito útil história
sobre o Concelho dos Olivais. Embora só tenha sido criado a 11 de
Setembro de 1852, a sua origem remonta a 6 de Maio de 1367,
quando o arcebispo de Lisboa, D. João Anes, criou a Freguesia dos Olivais, cuja área compreendia todo o Termo de Lisboa.
Apesar das muitas desanexações que sofreu ao longo dos séculos, ainda no
século XVIII, a sua área era enorme nos arredores de Lisboa. Quando foi criado
o Concelho do Olivais integrava 22 freguesias,
entre as quais se contava justamente a dos Santos Reis Magos (a actual
Freguesia do Campo Grande). Recorde-se que entre 1855 e 1858, os Paços do Concelho funcionaram no antigo Palácio do Marquês de
Valença ao fundo do Campo Grande.
Quando foi extinto, em 1885, uma parte da sua área foi integrada no
Concelho de Lisboa, outra no então criado Concelho de Loures, e
outra ainda no Concelho de Mafra.
Ralph Delgado estudou
como ninguém até à altura, a documentação que subsiste do citado concelho, e procurou identificar
os principais problemas com que a sua vereação se debatia nas freguesias. É significativo assinalar que entre os poucos casos que
particulariza, dois deles se referem justamente à freguesia do Campo Grande.
O primeiro
é o das crónicas inundações que aqui ocorriam quando começava a
época das chuvas: ficava tudo alagado. Esta Câmara mandou proceder à construção de um sistema de canalizações, a
fim de evitar a repetição destas situações. O que infelizmente não se veio
a verificar.
O segundo,
diz respeito às severas medidas que a Câmara se viu obrigada a tomar
para "proibir os despejos" que tornavam o Campo Grande
"numa lixeira insalubre" (sic). Havia porcaria por todos os
lados.
Ralph
Delgado (1969), A Antiga Freguesia dos Olivais. Lisboa. CML
D.Pedro
II é chamado a intervir
Uma belissima história sobre ratos ... |