O 25 de Abril costuma ser associado
à Freguesia de Alvalade em três acontecimentos fundamentais da
história recente de Portugal:
Dois deles são as comemorações do 1º. de Maio no Estádio do
INATEL (antiga FNAT) em 1974 e 1975. A primeira foi marcada pela "unidade das forças partidárias",
a segunda pelo seu violento confronto
O
acontecimento menos conhecido de todos é o da combinação da "senha" difundida pela Rádio Renascença para a saída das tropas dos
quartéis no próprio dia 25 de Abril de 1974. A sua
escolha fez-se no bairro de alvalade, onde tinha igualmente a sede a empresa radiofónica que emitia programa "Limite" que pôs
no ar a célebre canção "Grândola Vila Morena".
A
verdadeira história da senha do 25 de Abril de 1974
Era meia-noite, 20 minutos, 19 segundos
Carlos Albino
Passaram 25 anos desde aquele momento em que eu e o Manuel Tomás nos vimos directamente comprometidos
e cúmplices conscientes na senha para o arranque simultâneo dos militares que decidiram acabar de uma vez por todas com uma
ditadura que matava o País com uma morte que não se via. Durante este tempo todo, os únicos responsáveis directos pela
execução e transmissão da senha têm assistido ao mais lamentável desfile de vaidades por parte de gente e até de forças políticas
que indevidamente têm querido apropriar-se desse gesto. E o que é mais lamentável é que, tendo este País tantos
historiadores, quase nenhum destes quis acertar com a verdade sobre factos recentes e autores vivos. Em matéria de senhas do
25 de Abril, tem havido para cada um a sua senha.
Otelo é que, no fundamental, tem dito
sempre a verdade no seu legítimo ponto de vista de comandante operacional do 25 de Abril. E, diga-se, também pouco mais
interessará do que esse ponto de vista, pelo que os responsáveis efectivos pela execução e transmissão da senha jamais ao
longo destes anos tentaram meter-se ou insinuar-se nessa área em que Otelo fala por direito próprio, como também, depois que
foi comunicada e confirmada em definitivo a senha escolhida pelo Movimento, jamais incomodaram os militares operacionais com
questões que apenas passaram a fazer parte da responsabilidade
de quem, independentemente do risco (ao lado do local da emissão
da senha estava o Governo Civil, pejado de polícia de choque, e
em linha de vista a própria sede da PIDE), assumiu o firme
compromisso de a transmitir e no momento exacto. Foi o que
aconteceu e também isto foi importante.
Ora, a partir do momento em que ficou
assente que para o arranque do movimento militar seria necessária
uma senha transmitida através de uma estação de rádio com
efectiva cobertura nacional, as escolhas não eram muitas. Uma
das escolhas seria o Rádio Clube Português, que haveria de ser
pensado para posto de comando do Movimento após ocupação
militar das instalações, e transmitir previamente uma senha
por aí seria uma imprudência de toda a ordem. Outra escolha
possível seria a antiga Emissora Nacional, mas não se via lá
dentro alguém com capacidade de intervenção e iniciativa para
actuar àquela hora ou mesmo a qualquer outra hora, pois os
democratas nessa altura não abundavam por lá. Restava a Rádio
Renascença e dentro desta o "Limite", um programa
independente que, pelo aluguer de instalações e antenas para
as suas emissões, pagava por mês o equivalente em moeda actual
a 4500 contos.
O programa, à data da preparação
final do movimento militar, tinha no núcleo duro dos seus
decisores Marcel de Almeida (um amigo de longa data de Melo
Antunes), Leite Vasconcelos e Manuel Tomás (vindos de Moçambique
com indesmentivel currículo de democratas) e o signatário.
Como não acontecia com qualquer outro
programa de rádio, o "Limite", que era transmitido em
directo, era alvo de duas censuras: uma que era a da própria Rádio
Renascença e a outra a oficial, exercida por um coronel cujo
nome neste momento não me ocorre mas de que conservo as
garatujas de assinatura, instalado na Renascença exclusivamente
para actuar sobre o "Limite" (por tanto recebia o
equivalente hoje a 300 mil escudos, quantia obtida através do
aumento do aluguer das antenas ao "Limite" - ou seja,
o programa pagava indirectamente ao seu próprio censor...
E quanto aos célebres Emissores
Associados de Lisboa, o que era isso? Essa rede de fracos
emissores mal se ouvia em Lisboa (nas zonas baixas da cidade a
sintonia era impossível). Seria impensável a transmissão de
uma senha para todo o País através dos Associados. O sinal que
consistiu em E depois do Adeus serviu e bem como primeiro
toque para uns poucos operacionais e, diga-se já agora, serviu
também para quem no "Limite" estava com aviso.
Mas por aí houve uma fase em que toda
a gente corria para as senhas de Abril, para os símbolos de
Abril, para as condecorações de Abril, para os heróis de
Abril, e no meio de tanta distracção chegou a dizer-se que o
sinal dos Associados serviu para todo o País, pouco faltando
para se garantir que quando o Paulo de Carvalho apresentou tal
canção para o concurso televisivo já o tinha feito a pensar
no MFA, na noite do 25 de Abril, na libertação dos presos políticos,
no fim da censura e no termo da guerra colonial. Que José
Afonso assim já pensasse (e de há muito) quando escreveu,
cantou e gravou a Grândola, não duvido.
Mas devo dizer, agora que passaram 25
anos e no que está relacionado com o que me pediram, que apenas
dois civis tiveram conhecimento do processo que culminaria com a
senha do 25 de Abril: Manuel Tomás e quem dá testemunho nestas
linhas. Álvaro Guerra foi um precioso elemento de ligação e
naturalmente que não foi ouvido nem achado para a execução da
senha; Leite Vasconcelos, que no seu dia de folga deu a sua voz
a tudo o que tinha que ser dito nos exactos 11 minutos de duração
do bloco previamente submetido às censuras; o estagiário de
locução que estava na cabine (não quero dizer o nome antes
que o encontre porque é um dos que têm andado para aí a
mentir) estava longe de imaginar o que se iria passar e nada
justificava que se lhe dissesse o que estava em jogo; a regência
de estúdios onde em todo o caso poderia ser interrompida a
emissão caso tivesse ocorrido alguma denúncia, estava debaixo
de olho. Mas, acima de tudo, devo aqui testemunhar que o Manuel
Tomás, para além de uma lealdade total, foi uma peça-chave
para o êxito da pequena coisa que foi pedida - a senha.
A caminho
do limite
22 de Março. Informação inicial sobre a
inevitabilidade de uma senha por rádio com efectiva cobertura
nacional para o arranque dos quartéis.
29 de Março. Ensaio no Coliseu
(festival da Casa da Imprensa) sobre a aceitação de Grândola.
O festival foi gravado e transmitido em diferido pelo Limite.
23 de Abril, fim de manhã. Álvaro
Guerra é o elemento de ligação com Carlos Albino, a quem pede
a transmissão da canção Venham mais Cinco no Limite de
25 de Abril. Carlos Albino pede a Álvaro Guerra para devolver a
resposta de que tal canção estava proibida pela censura
interna da Renascença embora a censura oficial a tolerasse.
Sugeridas alternativas, entre as quais Grândola.
24 de Abril, 10 horas. Álvaro
Guerra novamente serve de elo de ligação de Almada Contreiras
com Carlos Albino, a quem comunica a escolha definitiva de Grândola
Vila Morena como senha para o movimento militar. Carlos
Albino garante a transmissão.
24 de Abril, 11 horas. Carlos
Albino adquire na então Livraria Opinião, a Madeira Luís, o
disco "Cantigas de Maio" para garantia. Desde Dezembro
de 1973, havia indícios de que a PIDE preparava o assalto dos
escritórios do Limite, na Praça de Alvalade.
24 de Abril, 15 horas. Encontro
decisivo com Manuel Tomás, para a execução da senha e garantia de transmissão face às duas censuras que o Limite
enfrentava: a da Rádio Renascença e a oficial (um coronel que aconpanhava as emissões em directo e visava previamente os textos). Carlos Albino e Manuel Tomás decidem sair dos estúdios
para um local onde possam prosseguir com segurança o diálogo.
24 de Abril, 15 e 30. Ajoelhados
na Igreja de S. João de Brito e simulando rezar, Carlos Albino e Manuel Tomás combinam todos os pormenores técnicos da senha.
24 de Abril, 17 horas. Leite Vasconcelos (em dia de folga na locução do Limite) é convocado por Manuel Tomás para "gravar poemas".
Carlos Albino escreve textos para serem visados pelo censor.
24 de Abril, 19 horas. Censor
autoriza textos e alinhamento.
24 de Abril, 20 horas. Na
Renascença, gravação dos textos por Leite Vasconcelos, desconhecendo o objectivo.
25 de Abril. Aos 20 minutos e 19
segundos, arranque da fita com a senha. Carlos Albino e Manuel
Tomás retiram-se da Renascença às 3 e 30.
Que vasta
galeria de falsos heróis
Carlos Albino
A senha, com as características com
que foi pedida (leitura da primeira quadra de Grândola,
transmissão integral da canção e repetição da quadra
inicial), era à partida de difícil execução e transmissão
num programa que estava debaixo de duas censuras: uma,
relativamente tolerante e até em certos momentos pactuante,
montada pela Renascença, e outra, braço directo da censura
oficial a actuar exclusivamente sobre o Limite.
É lícito recordar isto, pois não são
poucos os que têm procurado fazer a contrafacção da senha,
chegando a pôr em causa a palavra e a própria dignidade
pessoal das duas únicas pessoas (e não mais) que têm a ver
directamente com o caso.
Em todo o caso, a leitura das quadras
(independentemente de a canção de José Afonso ser permitida)
e só pelo facto de ser uma leitura suporia sempre passagem pela
censura que chegou a impedir que fizéssemos momentos de silêncio
(as brancas como se diz na gíria da rádio). Ninguém hoje pode
imaginar a dificuldade que era a de fazer rádio em directo como
nós, os do Limite, fazíamos. Era aliás a nossa razão de
existir na rádio.
Como é que as dificuldades foram
contornadas, com a máxima garantia de que a transmissão da
senha não seria interrompida, abortada ou substituída por outro
material? Todos os cuidados eram poucos, pois não se passava só
connosco - a PIDE conseguia instalar informadores em tudo o que
fosse sítio. O Limite não poderia ser uma excepção só por
ser Limite.
Como dois a pensar funcionam melhor do
que um só, o Manuel Tomás e eu (ajoelhados na Igreja de S. João
de Brito, local fantasticamente protegido para conspiração de
tal tamanho, pois até o facto de o pároco ser então o antípoda
dos progressistas ajudava a que o local obrigasse a PIDE a
grandes cuidados), a senha ficou combinada nestes termos: eu
escreveria dois poemas para justificar a chamada a serviço do
Leite Vasconcelos, que estava em dia de folga, os textos
seguiriam para o censor, o Manuel Tomás, segundo um alinhamento
combinado, faria a engenharia final da peça, no domínio estético
e técnico. Este modo de actuação não daria grandemente nas
vistas: o Limite assentava na sua maior parte sobre textos poéticos
meus lidos sempre, àquele época, pelo Leite de Vasconcelos e
trabalhados também sempre segundo os belíssimos esquemas que
somente a sensibilidade artística de Manuel Tomás conseguia
nas circunstâncias em que trabalhávamos.
Assim foi.
O alinhamento foi redigido, em resumo:
quadra, canção Grândola, quadra, poema Geografia,
poema Revolução Solar e para finalizar a canção Coro da Primavera.
Os censores (da Renascença e o
coronel) viabilizaram os textos sem hesitações: a
"geografia" falava dos rios portugueses e a
"revolução solar" falava de planetas e galáxias...
Para eles, isto não tinha "política". Viabilizados,
os textos foram lidos pelo Leite de Vasconcelos e gravados a
seco, sendo pouco depois trabalhados sonoplasticamente pelo
Manuel Tomás. O bloco ficou com 11 minutos, o que era habitual
no Limite. Tudo se fez como se tudo fosse o mais normal. O que não
tem sido normal é o aproveitamento que nestes 25 anos se tem
feito da senha.
Vou esfoçar-me para não dizer nomes,
pois estamos em época de concórdia, mas recordo que surgiu um
e garantiu que escolheu comigo o disco da senha. Não escolheu
nada. Surgiu outro e garantiu que a senha foi o Depois do
Adeus - e bem se viu o triste espectáculo e as tremendas
confusões que fizeram nas comemorações do 25 de Abril que
decorreram em Santarém. Ora isso não foi senha, por amor de
Deus!
Outro que nem era do Limite deixou-se
filmar para um alegado documentário sobre a senha que percorreu
o Alentejo, sendo aqui recebido como herói. Não era. E outro
que até era do Limite - não resisto a citar Leite de
Vasconcelos - deixou-se filmar pelo musicólogo Fernando Matos
Silva para alegada "reconstituição do cenário". Não
era. A voz foi dele, mas ele estava longe do estúdio e mais
longe ainda do que a senha significava.
Reportagem
no ar sem hesitação
Carlos Albino
As primeiras reportagens sobre o 25 de
Abril e o que estava a acontecer nas ruas da capital,
solicitadas como serviço a Adelino Gomes, a quem foram
disponibilizados meios profissionais adequados, foram
transmitidas por responsabilidade do Limite.
Os noticiários da Renascença até 27
de Abril continuaram com reservas sobre a queda da ditadura e
ninguém esperava que o MFA fosse ocupar o Rádio Clube Português
para mandar fazer reportagens... A Emissora Nacional dava música
clássica e quanto aos Emissores Associados, ninguém ouvia nem
podia ouvir isto.
Os primeiros debates políticos com
intenção deliberadamente pluralista aconteceram no Limite. Mas
também todo este sonho acabou no dia 8 de Junho de 1974, após
a transmissão da primeira entrevista com Arnaldo Matos (na
presença de Fernando Rosas, o historiador deve recordar bem a
cena) e depois de terem sido ouvidas personalidades dos mais
diversos quadrantes.
A Renascença acabou com o Limite
trocando-o pelo efémero "Voz dos Trabalhadores"
decidido em plenário, onde também ninguém se solidarizou com
as circunstâncias que ditaram o fim do contrato firmado entre o
Limite e a Renascença.
Não foi difícil perceber que a colisão
frontal entre o Limite e a administração da Renascença de então
resultou do facto de se ter usado a estação para a transmissão
da senha. Até hoje, ao que se saiba, nunca a estação assumiu
como ponto de honra o facto de ter acontecido nessa casa o gesto
que significou a mudança radical da vida portuguesa, pois, se o
fizesse, dificilmente poderia evitar a alma do Limite que tem
todos os motivos para descansar em paz.
Até ao último momento da existência
do programa ninguém compreendeu como a Igreja perdeu uma
oportunidade excelente para, logo em 1974, sair da sexta-feira
pouco santa da ditadura para decididamente entrar no dia de ar
livre da ressurreição que começou a ocorrer apenas passados
anos, limitada e tardiamente.
Digamos que sobre o Limite caiu uma espécie
de maldição impensável e da qual, por certo, nestas páginas
de alguma forma se livra tendo sido necessário deixar passar
estes 25 anos para que se diga à vontade o que jamais pode ser
entendido como defesa de causa própria. Na verdade, algo de
fundamental para a Revolução do 25 de Abril faz parte do
património disso que hoje é já mera lembrança e simples
recordação, mas que para aquela grande parte de uma geração
a entrar nos 40, 50 e 60 que não perdeu ou não quis perder a
memória, continua a ser a evocação suave de uma deliberada
cultura de sensibilidade e da fragrância de um perfume com as
possíveis palavras rasgadas nas noites de terror.
Não se está a sugerir o descerramento
de uma placa à entrada da Renascença, nem outra coisa
qualquer. O que se sugere é que já era altura de a Renascença
assumir o Limite como facto importante da sua biografia, como
altura é dos historiadores e candidatos a isso serem mais
rigorosos e precisos, quanto a nomes, horas e formas. Sobretudo,
ouvindo quem fez sobre o que fez.