Público,
10 de Março de 2002 Câmara Cedeu a Terceiros Os Terrenos Que Tinha Entregue à Universidade Moderna "Hotel de charme" vai para Belém O acordo de cavalheiros entre João Soares e a Universidade Moderna foi mandado às urtigas. No ano passado, já com os dirigentes da Moderna na prisão, a Câmara desfez tudo o que tinha combinado com eles e os tinha levado a gastar dezenas de milhar de contos A Câmara de Lisboa cedeu a uma empresa hoteleira, em Julho do ano passado, os mesmos terrenos municipais que, três anos antes, o então presidente da autarquia, João Soares, havia entregue à Universidade Moderna para que esta criasse uma zona verde e de estacionamento em frente à sua reitoria. Graças às garantias verbais do ex-autarca, os antigos dirigentes da Moderna, actualmente presos e à espera de julgamento, gastaram dezenas de milhar de contos no arranjo do espaço depois atribuído a sociedade Carlos Saraiva II - Empreendimentos Turísticos SA. O principal accionista desta empresa é o mesmo empresário que, poucos meses antes, em nome de uma outra sociedade por si controlada, negociou a venda de três apartamentos de luxo ao ex-vereador do trânsito, Machado Rodrigues, em condições que estão a ser investigadas pelo Ministério Público (Ver PÚBLICO de 14 e 24/11/2001). No início de 1998, os cerca de doze mil metros quadrados fronteiros à Universidade Moderna, junto à Avenida da Índia e à Avenida da Torre de Belém, estavam ocupados por algumas dezenas de barracas. Necessitados de espaço para estacionamento e pouco interessados em investir num parque subterrâneo que os serviços camarários lhe exigiam, os responsáveis da Moderna, através do ex-reitor, José Júlio Gonçalves, estabeleceram com João Soares um "acordo de cavalheiros" que nunca foi tornado público, e cujos contornos as duas partes se recusaram sempre a esclarecer. Em qualquer dos casos, João Soares garantiu repetidamente que a autarquia não tinha gasto um tostão com o arranjo da zona envolvente da universidade e que tudo tinha sido feito - incluindo uma parte dos realojamentos das famílias residentes nas barracas e a criação de jardins e de uma ampla área de estacionamento à superfície - por força da "boa vontade" dos dirigentes da Moderna, entretanto detidos por suspeitas de ilegalidades na gestão da instituição. O valor exacto das despesas suportadas pela Dinensino - a cooperativa proprietária da universidade - nunca veio a ser apurado pela direcção que substitui a gerência controlada pela família do antigo reitor, mas os actuais responsáveis estimam que a limpeza da área, incluindo a recuperação de alguns imóveis camarários, a criação do estacionamento e o ajardinamento da zona circundante tenha custado algumas dezenas de milhar de contos. "A única documentação que encontrámos prova que, só nos realojamentos de nove famílias, efectuado por acordo entre a Dinensino e os moradores em Fevereiro de 1998, custou à cooperativa 12 200 contos", diz o actual número um da cooperativa, Rui Albuquerque. Os dirigentes da Dinensino só agora tomaram conhecimento, através do PÚBLICO, de que o espaço onde a cooperativa investiu com o apoio de João Soares, e que lhe resolvera o problema do estacionamento, tinha sido entregue a terceiros. "Vamos estudar o assunto, mas a nossa intenção é comunicar ao actual presidente da câmara aquilo que entendermos serem os nossos direitos", afirmou Rui Albuquerque. Cedência sem concursoA cedência do direito de superfície sobre o terreno em questão foi aprovada, com a abstenção do PSD, por deliberação municipal de 18 de Julho do ano passado, e destina-se à construção de um parque de estacionamento subterrâneo com um piso, "sendo a superfície destinada a espaço de utilização pública e zona de protecção do hotel a construir" numa parcela contígua. Trata-se de um "hotel de charme" cujo projecto se encontra em fase adiantada de aprovação e que deverá resultar da transformação e alargamento da Casa dos Governadores da Torre de Belém, um imóvel do século XVII em que, até há pouco, funcionaram alguns serviços da Segurança Social. Nos considerandos da deliberação municipal que autorizou a cedência salienta-se que "na área de Belém, até pela grande concentração de equipamentos, a acessibilidade de viaturas e seu estacionamento está especialmente condicionada" e que "se encontram livres os terrenos" solicitados. Além disso, sustenta-se que esses terrenos têm "potencialidades" para estacionamento e que a "confrontação do parque [com o o futuro hotel] poderia possuir condições melhoradas se executado e explorado com esse empreendimento [hotel]" (sic). A empresa beneficiária da cedência do direito de superfície, a Carlos Saraiva II, deverá pagar à câmara 1154 euros por mês, ficando também responsável pelos "arranjos à superfície que se justifiquem, bem como pela sua manutenção futura". A cedência dos terrenos por cinquenta anos foi efectuada sem a realização prévia de concurso público, ao contrário do que acontece normalmente nestas situações, e foi aprovada pela Assembleia Municipal no final de Setembro. Muito antes da deliberação que autoriza a cedência do direito de superfície, porém, a câmara já tinha aprovado o projecto de construção do parque de estacionamento, o qual lhe havia sido submetido pela Carlos Saraiva II, na qualidade de detentora daquele direito. A própria deliberação refere que esse projecto já se encontrava deferido, sendo certo que tal nunca poderia ter sucedido antes de a requerente ter, como não tinha, direitos sobre a propriedade. A licença de escavação necessária ao início da obra - que ainda não começou - foi deferida em 27 de Novembro por Machado Rodrigues, enquanto vereador do Trânsito, numa altura em que a Assembleia Municipal ainda não tinha autorizado a cedência. O requerimento em que a Carlos Saraiva II solicitou o direito de superfície ao vereador Machado Rodrigues - que não tinha qualquer tutela sobre o património municipal - foi entregue a 1 de Junho do ano passado e mereceu, em 11 do mesmo mês, o seguinte despacho daquele ex-autarca: "À consideração da senhora vereadora Margarida Magalhães [vereadora do Urbanismo], com o meu parecer de concordância, dado o interesse do parque de estacionamento não só para apoio ao hotel, mas também para o público em geral." Quatro dias depois, os vereadores do Urbanismo e do Património pronunciam-se favoravelmente ao pedido, tendo a cedência do direito de superfície sido aprovada no dia 18 do mês seguinte. A escritura pública de cedência do direito de superfície ainda não foi celebrada e o processo de licenciamento da construção do hotel e de dois edifícios de comércio e serviços anexos continua em apreciação nos serviços camarários JOSÉ ANTÓNIO CEREJO |