Judaísmo em Portugal

Carlos Fontes

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O Grande Saque

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A Igreja Católica portuguesa entre 1536 e 1821 teve sempre duas preocupações fundamentais: 

 

- Assegurar que fosse garantido o confisco (roubo) dos bens dos cristãos novos, uma das suas grandes fontes de receitas. 

 

- Impedir a sua saída dos cristãos novos de Portugal, de modo a manter a sua fonte permanente de rendimentos. A Santa Sé chegou a acusar a Igreja portuguesa de estar a escravizar os cristãos novos.

 

Os constantes conflitos entre os clérigos portugueses e o papa, sobre a Inquisição, raramente diziam respeito a questões doutrinais, o problema recorrente era a possibilidade do confisco (roubo) dos bens dos condenados.   

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Reserva de Vítimas

D.Manuel I quando, em 1497, proíbe o judaísmo em Portugal, tinha em vista sobretudo a conversão forçada dos judeus ao cristianismo. A maioria dos crentes fê-lo, mas alguns milhares preferiram abandonar o país. Em 1499 o rei proibiu estas saída dos dos Cristãos Novos, sem a sua autorização. Face ao massacre que estes foram vítimas na cidade de Lisboa, em 1506, no ano seguinte autorizou a sua livre circulação e saída do reino. A Igreja Católica criticava abertamente a enorme liberdade que os cristãos novos possuíam em Portugal. 

D. João III, que ascende ao trono em 1521, retomando pouco depois as negociações junto da Santa Sé para o estabelecimento da Inquisição em Portugal. Em 1532 proíbe pelo prazo de 3 anos a saída dos cristãos novos, assim como os seus descendentes. Preparava-se desta forma uma reserva de vítimas para o seu posterior saque. Em 1535 volta a renovar a proibição da saída por mais 3 anos, no ano seguinte, a Inquisição é chega a Portugal. Em 1547 volta a proibir-se por mais 3 anos a saída dos cristãos novos. 

Tratou-se de um processo relativamente longo, dadas as enormes pressões junto do papa. A Igreja católica espanhola, exigia que a Inquisição portuguesa ficasse sob o seu domínio, tendo em vista apropriar-se dos bens dos condenados. Em Roma, os cristãos novos, através de figuras como Duarte da Paz, pagavam elevadas somas à Cúria Romana para adiarem o processo.  

Uma das últimas decisões de Catarina de Austria (espanhola), regente do reino foi, em 1567, proibir a saída dos cristãos novos do reino. No ano seguinte, D. Sebastião ascende ao trono e a decisão manteve-se. Em 1577 a troco de 250 mil cruzados, autoriza por 10 anos a sua saída do reino. O rei morre em Alcácer Quibir (1578), sendo o trono de Portugal ocupado por um rei espanhol. Este apressa-se a revogar as autorização anterior, proibindo a sua saída reino. Para evitar a sua fuga, proibe que os mesmos se possam ausentar do bispado (1580). O saque em larga escala começara. Em 1587 são confirmadas as proibições de circulação dos cristãos novos, agora transformados em meras fontes de rendimento através de saques sistemáticos.

Face a problemas de tesouraria da Corte Espanhola, em 1601, a troco de 170 mil cruzados, os cristãos novos são autorizados a sair de Portugal. Receberam também elevadas quantias: o Duque de Lerma, D. João de Borja (do Conselho de Portugal), Fernão de Matos (secretário do dito Conselho), Pedro Alvares Pereira (do Conselho) e outros ladrões.  Uma vez feito o saque a decisão foi revogada em 1610.

Perante novos problemas de tesouraria, em 1629, os ricos banqueiros e mercadores cristãos novos portugueses são autorizados a estabelecerem-se em Espanha, onde acabam por serem mortos e roubados.

A proibição de saída dos cristãos novos era deste modo um elemento fundamental para a manutenção de uma importante fonte de rendimento da Igreja Católica, mas também da Corte e da Alta Nobreza.

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Confisco

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Se o papa autoriza o estabelecimento da Inquisição, em 1536, não autoriza todavia o confisco dos bens dos condenados durante 10 anos. Uma decisão papal paga a peso de ouro pelos cristãos novos portugueses. 

 

Contra esta medida se insurgiu quer o D. João III e a Igreja Católica portuguesa, pois viu-se privada de iniciar o saque dos cristãos novos. Apesar de todas as pressões, em 1546, o papa prorroga por mais 1 ano a proibição do confisco (roubo) de bens. No ano seguinte, para grande escândalo da Igreja católica portuguesa suspende de novo o confisco por 10 anos. O que volta fazê-lo em 1558. 

O Inquisidor-Geral - o Cardeal-Infante D. Henrique - perante o enorme prejuízo que estava a provocar estas proibições dos papas, em 1563, decide revogar as decisões da Santa Sé e autoriza o confisco dos bens dos condenados, com efeitos retroactivos desde 1558. A Inquisição tem finalmente autorização para se apoderar dos bens dos cristãos novos mais ricos do reino, acusando-os de judaismo. Para dar alguma legitimidade ao roubo, em 1572, aprova o regimento dos juízes das confiscações. 

Os problemas financeiros de D. Sebastião, como dissemos, em 1577, levam-no a troca de uma boa soma de dinheiro a autorizar a saida dos cristãos novos do reino, e a proibir durante 10 anos o confisco dos bens pela Inquisição. 

Uma vez obtido o dinheiro dos cristãos novos, o Inquisidor Geral e o agora também o papa, em 1579, chegam a acordo em anular o contrato de 1577. O dinheiro nunca foi devolvido. 

Os reis espanhóis, entre 1580 e 1640, transformam a Inquisição numa poderosa máquina de fazer dinheiro através do roubo dos condenados. Em 1620 são aprovados os novos regimentos da confiscação dos bens.

A restauração da Independência de Portugal, em 1640, é recebida com grande esperança pelos cristãos novos. Pura ilusão. A Inquisição havia-se tornado num estado dentro do Estado, não obedecendo sequer às ordens do rei. 

D João IV, em 1649, proíbe a confiscação dos bens pela Inquisição, e é de imediato excomungado, só sendo absolvido quando morre.  A Igreja católica portuguesa não estava disposta a permitir que lhe retirassem esta fonte de rendimento e poder.

O novo rei, D. Afonso VI, logo após ter sido coroado, repõe a autorização para o confisco de bens dos cristãos novos (1657). A Igreja Católica e em particular a Inquisição são agora reforçadas no seu poder. O saque dos condenados volta a atingir enormes proporções.  É neste contexto que a Santa Sé, em 1668, restabelece as relações diplomáticas com Portugal.

Por toda a Europa denuncia-se o terror da Inquisição em Portugal e Espanha. O padre António Vieira e outros denunciam este roubo, que decapitava o país dos seus elementos mais empreendedores. O papa, em 1674 resolve suspender o confisco de bens. A Igreja Católica portuguesa organiza manifestações e motins, contra os cristãos novos, exige que os mesmos sejam exterminados. O papa em 1681 volta repor o confisco de bens.

A Inquisição, nas primeiras décadas do século XVIII, volta-se para o Brasil, em particular para a região das Minas Gerais, onde se haviam constituído importantes fortunas. Após ter arruinado grande parte do país, em particular Lisboa, Trás-os-Montes, Beira Interior, Alentejo e Algarve chegara a vez de lançar mão da riqueza produzida n outro lado do Atlântico. 

É necessário esperar pelo consulado do Marques de Pombal, para se pôr fim ao saque dos cristãos novos pela Igreja Católica, através da Inquisição.   

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Partilha de Espólios

Entre 1536 e 1580, a Inquisição, pode perseguir e roubar os cristãos novos necessitar de uma grande organização ou apoios sociais. Durante o período dos reis espanhóis (1580-1640), teve que alargar a sua base de apoio e controlo da população. 

O seu mais importante instrumento foram os conhecidos familiares do Santo Oficio. Tratam-se de agentes locais da Inquisição, que tem como função recolherem informação, denunciarem e acompanharem a prisão e participarem no saque dos bens do condenado, assim como na sua morte. 

Os familiares do Santo Oficio acabaram por ter um enorme poder a nível local, da qual tiravam frequentemente proveito pessoal, nomeadamente chantageando os cristãos novos, desfazendo-se dos mesmos denunciados como "judeus", obtendo "favores sexuais" sob coação das vítimas, etc. 

O número de familiares e a sua distribuição territorial acompanhou as estratégias de saque da Inquisição e politicas da Corte.

Foi durante o reinado de D. Sebastião que foram nomeados o primeiros familiares: 18 entre 1571 e 1580. 

Os reis de Espanha, tinham necessidade absoluta destes informadores, e  não tardaram em aumentar o número. Entre 1581 e 1590 foram já nomeados 47, entre 1591 1600 foi de 92. Entre 1601 e 1610 subiu para 219, e na década seguinte para 326, atingindo entre 1621 e 1630 as 577 nomeações. 

Á medida que cresciam as criticas à Inquisição, e era posto a nú o seu carácter de uma organização criminosa que vivia do terror e roubo de inocentes, mais aberta esta se mostrou a nomear novos familiares. Entre 1691 e 1700 foram feitas 1.434 nomeações, para na década seguinte se atingir as 1.570.  

Embora a Inquisição na segunda metade do século XVIII, tenha perdido muito da sua função punitiva em matéria de "religião", adquiriu  um crescente protagonismo na esfera política. 

O cargo de familiar do Santo Oficio continuou a ser apetecível pelo poder que conferia a capacidade de denunciar alguém. Não admira que na década de 1761 e 1770 tenham sido nomeados 2.252 familiares do Santo Oficio. 

A Corte precisava de muitos "bufos" para controlar a população contra as ideias que abalavam a Europa. Apesar disto, muitos continuaram a ser acusados de "judaísmo". 

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Criminosos à Solta

As vítimas da Inquisição não tinham o direito a saber do que eram acusadas, nem se podiam defender, ornando-se desta forma alvos fáceis de tudo o tipo de criminosos. Não eram apenas os familiares do Santo Ofício a tirarem partido das perseguições aos cristãos novos, muitos outros criminosos viviam da sua extorsão. Vários acabaram na própria Inquisição:

a) Testemunhos Falsos. Milhares de pessoas foram perseguidas, condenadas e mortas devido a falsas acusações.  Os motivos eram os mais variados: vingança, chantagem, fanatismo religioso, etc. Frades e padres católicos davam o exemplo. 

Alguns exemplos: Em 1572 foram mortos em Évora 4 individuos por testemunhos falsos. Em 1573 foi condenado em Coimbra um tabelião, por organizar testemunhos falsos. Em 1583 foram condenadas duas mulheres em Coimbra, por iguais motivos. Em 1588 saiu penitenciado, em Coimbra, um denunciante falso.  Em 1600 foram mortos, em Évora, 3 por idênticos motivos. Em 1602, foram condenados vários em Évora. Em 1631 foi morto, em Lisboa, Diogo Rebelo, que com 33 outros comparsas vivia a denunciar e chantagear cristãos novos;  Em 1634 foram condenadas 8 freiras, em Coimbra, por fazerem falsas acusações.  

Em 1664 foi morto, em Évora,  um casal por falsos testemunhos. Em 1656, em Lisboa, dois padres foram mortos por falsos testemunhos. Em 1659 foram condenados, em Lisboa, 4 frades da Ordem de Cristo, por idêntico motivo. Em 1660, foi condenado, em Lisboa, um facínora de alcunha "Meia Noite" que vivia a acusar pessoas de judaísmo, em Abrantes.  Em 1713 foram condenados ao degredo 4 padres, em Coimbra,  falsos testemunhos.  Em 1723 foi morto em Lisboa um médico Francisco de Sá de Mesquita, que se andava a denunciar falsamente pessoas. Em 1728  foi condenada em Coimbra uma rapariga. Em 1737 e 1739, em Coimbra, foram condenados 3 padres por falsos testemunhos, para se vingarem de pessoas que os tinham denunciado. Em 1751 condenados, em Coimbra, 2 por falsos testemunhos.  Em 1765,foram condenados em Lisboa 4 frades também por testemunhos falsos.

b) Venda de Informações. O secretismo que envolvia os processos da Inquisição, gerava um próspero negócio clandestino de informações falsas e verdadeiras. 

Exemplo: Em 1656, foi degrado um alfaiate que vivia a negociar supostas segredos da Inquisição junto dos cristãos-novos.    

c) Falsos Familiares e Oficiais da Inquisição. Muitos eram os que se faziam passar por familiares do Santo Oficio para deste modo prenderem e roubarem pessoas. Em 1728, foi condenado em Lisboa, um padre que se fingia familiar da Inquisição para prender e roubar as pessoas.

Exemplos:  Em 1588 foi condenado um padre, em Coimbra, por andar a prender pessoas. Ainda em Coimbra, em 1591, foram condenados 4 individuos por se fingiram oficiais da Inquisição e andarem a prender pessoas. Em 1599 foi morto falso negociante da Inquisição (Coimbra). Em 1694 foi condenado 1 padre que andava a prender pessoas em nome da Inquisição (Coimbra).  Em 1738 foram condenados dois clérigos, em Évora, por falsificarem documentos da Inquisição.  Em 1741 foi condenado, em Lisboa,  um frade leigo por andar a prender e confiscar bens de cristãos-novos, fazendo-se passar por ministro da Inquisição. Em 1745 foi condenado um padre, em Lisboa, por igual motivo. Em 1755 foi condenado um padre, em Coimbra, por se fingir comissário do Santo Oficio e andar a ameaçar e extorquir pessoas.

As vítimas destes criminosos nunca foram libertadas e os seus bens lhes foram devolvidos. A Igreja Católica, através da Inquisição não apenas minou a coesão da sociedade portuguesa, mas também fez emergir o pior que os seres humanos são capazes. 

 

 
Carlos Fontes
 

 

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