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Nove
Contos Muito Lisboetas Para Despertar |
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Joanita
Não havia como a Joana no seu amor às plantas. Era com muita tristeza que todos
os dias olhava para o jardim da sua rua: sacos de plástico, papéis, flores mortas de sede, árvores com troncos
derrubados, bancos há muito apodrecidos desde o infantário que procurava uma
resposta para tudo isto. Apesar das explicações dos senhores da câmara que
falavam de jardins, não compreendia. Esbracejavam, abriam muito a boca e,
sobretudo davam muitos papelinhos com desenhos engraçados. Era tudo o que
retinha.
Ao longo dos anos a sua tristeza foi aumentando, o jardim tornou-se numa
verdadeira lixeira, no lugar de muitos arbustos havia agora possantes
automóveis. As árvores e as plantas iam desaparecendo uma a uma. Militante dos
espaços verdes assistira ao longo da sua vida, na escola e fora dela, a
inúmeras sessões de sensibilização ambiental promovidas pelos serviços
camarários. Nos últimos anos mal estes acabavam de falar, começou a sentir uma
crescente nausea. Protestava como ninguém junto dos serviços camarários pelo abandono geral dos
espaços verdes que via por todo o lado. "Sim, mas também", era
o que lhe respondiam e ficava tudo na mesma.
Naquele dia arrastou-se para a escola para mais uma sessão de
sensibilização camarária. Entrou na sala já esta tinha começado. Dirigiu-se
decidida para o honesto funcionário. Abriu, abriu a boca e comeu-o. Fez-se um
silêncio profundo, seguindo-se frenéticos aplausos. A professora erguendo a
voz impôs a ordem, e disse: - " Menina tenha propósitos! Não se limpa a
boca com as mãos! Tem aqui um guardanapo. Ele até era simpático. "
Nota para os pais. Todas as histórias infantis
são perversas e antropofágicas (o lobo come a avó no Capuchinho
Vermelho, a bruxa má alimenta criancinhas para as comer na casinha dos
chocolates, etc, etc). Nesta história temos que reconhecer que o
autor foi até comedido no tratamento do honesto funcionário, a Joanita
tinha mesmo razões de sobra para os digerir a todos. |
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A Aranha
A cidade acordou sobressaltada. Temia-se o pior: uma epidemia
generalizada. A comunicação social mobilizara todos os meios
disponíveis, assentando arraiais à entrada do minúsculo edifício
onde o Presidente despachava . No interior, com alguma dificuldade e
muita imaginação podia-se ainda vê-lo sentado numa magnífica escrivaninha datada do século XVIII. Quem não parava de falar era a
sua secretária, aranha para trás, aranha para a frente. "Ela
já ali estava há muito, mas nunca fez isto!", dizia pela milésima vez a uma estação televisiva internacional. "Todas
as semanas a Dª. Maria, limpava a teia.
O sr. Presidente não
suportava teias de aranha nem pó acumulado dizia que, numa
repartição pública, era o primeiro sinal de que ali ninguém
trabalhava. Era muito cuidadoso nesta questão." A aranha, essa
não parava de tecer e com os seus fios envolver o imobilizado
presidente. O director de um instituto de saúde pública acabava de
garantir às mais altas instâncias da Nação que dentro do
invólucro havia ainda ar suficiente para qualquer pessoa sobreviver.
A possibilidade de uma intervenção do exército para a dinamitar foi posta de parte, devido ao risco dos estilhaços danificarem a
escrivaninha. O maior receio era que o estranho comportamento da aranha pudesse
transmitir-se a outras. O que ninguém estava em condições de assegurar que não
aconteceria.
A secretária, eufórica pelo súbito protagonismo, descrevia vezes sem conta os últimos momentos que precederam a
tragédia: - " Como fazia todos os dias, após a entrada do sr. Presidente pedi licença para entrar no gabinete e coloquei sobre
a escrivaninha a pasta com os documentos para despacho, chamando-lhe
à atenção para a nota que acompanhava um ofício, "leia p.f.
antes de assinar". O que se passou depois foi muito rápido, o
sr. Presidente ficou petrificado e a aranha começou a tecer desta forma que se
pode observar." Após longas e tensas horas de insano trabalho, o
conselho de ministros chegou finalmente a uma solução de compromisso, tomando-se de imediato algumas
previdências: primeiro: nenhum documento público, susceptível de
despacho, pode ser acompanhado de qualquer nota; segundo: é
proibido divulgar o que se passa no interior de um gabinete, em especial
se se tratar de um Presidente. A porta do gabinete foi fechada,
ignorando-se desde então a dimensão da teia.
O
autor descurou neste conto os destinatários, a pequenada. Desculpa-se com o
facto ser ser cada vez mais difícil proibir seja o que for à miudagem,
nomeadamente quando esta segura os comandos da televisão. Depois meteu
na cabeça que tinha que fazer uma homenagem a Alexandre O`Neill e o
resultado é o que se pode ler. |
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Pára-Choques Dourado
“Apesar das manias é bom rapaz”, dizia o tio do José Maria
apreciado vendedor de hortaliça no antigo mercado de Entre
Campos. “Quando era pequeno dizia que era descendente de condes e
marqueses. No Liceu tanto chateou o professor de história que este
descobriu-lhe quatro ilustres zés marias.
Um decepado em Alcácer Quibir, um banheiro-mor conhecido em
Lisboa por “Lava Cús”, um negreiro e um “gaioleiro” de Campo
de Ourique. Durante anos ninguém o podia aturar com
seus ares de superioridade”. Era assim Zé Maria. Ultimamente depois
de esmagar a “gentinha” com o seu descapotável vermelho, sempre
reluzente, fulminou a concorrência com um “jeep” de pára-choques
dourados que com gestos suaves
percorria com uma camurça “especial”. O dedo mindinho intervinha
quando era necessário retirar as pequenas sujidades. Os seus momentos
de glória eram as chegadas triunfais à praceta. Não havia ninguém
que pudesse ficar indiferente. Parava frente a mais um pedaço da
berma do passeio, posicionando-se perpendicularmente, eram fracções
de segundo que parecia uma eternidade. Revelando grande firmeza na
decisão avançava então mostrando a potência de tantos cavalos
seguros nas suas mãos. As bermas
e pedras da calçada mostravam a sua humilde condição, levantando
voo. Após o confronto, Zé Maria, passeava
docemente o indicador sobre as formas viris do Jeep, procurando
em vão um sinal que fosse de tão violenta refrega. Nada. O triunfo
fora mais uma vez completo.
Escolha o final: versão A
- versão
B
Versão A
A rotina acabou por dar lugar
à imprevidência. Numa violenta investida embateu contra a parede de um prédio
amalgando o pára-choques dourado. Num acesso de fúria pontapeou-a e
deslocou o tornozelo. Foi a chacota geral dos sem carro. Zé Maria não
suportou tamanha humilhação, refugiou-se em casa e era vê-lo a definhar dia após dia. Naquele dia, Zé Maria resolveu sair às rua. Á
hora que o fez a praceta estava particularmente calma. O facto de não se dirigir ao
jeep e descer rua abaixo, levantou a mais
profunda inquietação entre os que o viram. A notícia circulou rapidamente e
ninguém deixou de opinar sobre as razões de tão estranho acontecimento. O regresso de Zé Maria foi aguardado com
grande ansiedade. Eis que ele surge ao fundo da rua com um semblante grave,
trazendo nas mãos umas algemas. Entrou no jeep, prendeu-se ao seu volante. Pôs o motor a funcionar, recuou o
jeep e arrancou a toda a velocidade e
zaaás! O senhor Joaquim da peixaria, no mesmo local, dizia
dias depois: "Era um bom rapaz, o azar dele foi querer mediar
forças com a parede. Há dias negros na vida de um homem."
Versão B
Naquele dia, Zé Maria acordou tarde. Á hora que saiu de casa, a praceta estava particularmente calma. O facto
de não se dirigir ao jipp, e descer rua abaixo, levantou a mais
profunda inquietação. A notícia circulou rapidamente.
A tensão aumentou quando, o Silvestre da papelaria, descobriu
uma cagadela de pombo mesmo em cima do capô. Prognosticaram-se as
mais dispares reacções: manifestações de dor próprias de um
descendente de um ilustre decepado, reclamaria a construção imediata
de um parque de
estacionamento subterrâneo, o extermínio de todas as aves. Não
havia qualquer consenso. O regresso de Zé Maria foi aguardado com
grande ansiedade. Eis que ele surge ao fundo da rua, pedalando
alegremente numa trotinete. “É inacreditável como esta gentinha
anda de jepp na cidade, julgam que estão num safari em África. Que
bimbalhada!”. Disse isto sem gaguejar com o negreiro, nem sequer
tremeu o lábio superior esquerdo como o gaioleiro.
O Joaquim da peixaria numa fracção de segundo passou de um
estado de espanto a outro que denotava uma crescente preocupação e
exclamou: “Está sem dinheiro! Não tarda em ir de férias
para as Seychelles”.
O autor reconhece que o conto não
revela grande imaginação, dado que se limita a descrever situações banais do quotidiano lisboeta,
embora tenha feito a promessa que o próximo será menos realista. Cá estamos para ver e ler. O mais grave é todavia a sua falta de
rigor histórico que demonstra na versão B. O gaioleiro referido no texto é um dos
construtores civis que acabaram por ficar tristemente conhecidos em
Lisboa no princípio do século XX. A falta de qualidade das construções era
tal que em Outubro de 1921, após vários desabamentos em Campo de Ourique, os operários da construção civil realizam
uma manifestação contra a sua acção, um acto de indignação que seria interessante ver hoje
repetido. Ou não há motivos para isso? |
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ETHER
"Sou eu mamã?", dizia
Rodriguinho, apontando para uma fotografia do cortejo fúnebre do
general. "Sim és tu", repetia a mãe pela milionésima vez.
A avó, menos paciente, assegurou-lhe que não se devia deixar
fotografar. Sempre que isso acontecia, um pedaço da sua alma era
comido e ía para a terra de ninguém. O que restava, era uma questão de tempo,
não tardava a desaparecer também. Sossegou mas não desistiu. Foi com
determinação que se fez sacristão. Sempre que havia baptizados ou
casamentos, lá estava ele ao lado de quem quer que fosse, desde que
estivesse no enfiamento da mira do fotografo. Mais visto que ele, só
as vedetas ou os políticos. Um calculo que determinou a escolha de
uma carreira promissora, decidiu abraçar a carreira política. Mal
foi eleito deputado era vê-lo em almoços com jornalistas,
conferências de imprensa, intervenções arrasadoras da Oposição
dirigindo-se às câmaras de televisão. Um dia foi de vez, desapareceu. As
avós têm sempre razão. Nos velhos arquivos de imagens, à noite, muitos juram ter já ouvido: "Olá,
sou eu! Não me vê?".
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Um Raio de Sol
A obra prosseguia em bom ritmo. O Julinho era
quem a melhor podia avaliar. À medida que o edifício se erguia,
deixando na sombra as casas mais pequenas no bairro, a sua gaiola ia
subindo na tentativa de ainda apanhar uma réstia de sol.” Não
digas nada à dona”, dizia o Senhor Domingos, para o canário,
“Amanhã vou à Câmara”. Desde que a mulher morrera, encerrara-se
em casa e raramente saía. A custo fez-se ouvir no enorme balcão de
atendimento dos paços do concelho. “O sol acaba-se?!. O que quererá
ele dizer?”, repetia incrédula a funcionária camarária. “Espere
ali se faz favor”, aponta-lhe um banco corrido. Dirigindo-se para
uma das colegas: “O velhote está cheio de medo que o sol se lhe
acabe, o que é que eu faço?”. “Não faças nada, ele acaba por se ir embora”. No outro dia, lá estava ele no mesmo banco,
esperando uma resposta, e assim continuou durante muitos dias.
Segurando uma velha gaiola onde em tempos, cantou Julinho, ninguém já
reparava na sua presença, era um entre muitos outros que aguardavam
uma resposta. O novo presidente entrara na Câmara disposto a
mudar tudo, a começar pelos serviços, há muito acusados de inépcia.
Desde que tomara posse que reparara naquela humilde figura encerrada
num fato negro, de nariz afilado que lhe lembrava vagamente os corvos
da cidade. Era sempre o primeiro a chegar aos Paços do Concelho,
sentava-se no banco corrido da entrada onde incidiam os primeiros
raios de sol e esperava pacientemente a chegada dos munícipes.
“Chegou a altura de premiar a dedicação”, confiou aos seus
assessores. Naquela manhã convocou a imprensa, e no seu estilo
retumbante, apontou o caso como o exemplo da incapacidade do seu
antecessor para dar condições de trabalho aos mais zelosos
funcionários. O vereador do turismo foi desapossado do seu
magnifico gabinete e foi fazer turismo para outro lado. Todas as exigências
do novo hospede eram aceites sem pestanejar. “Uma cómoda, um
penico, um manjerico...”, conferia escrupulosamente o empregado da
empresa de mudanças. A maior das surpresas estava para acontecer. Um
velho canário trinava agora na Câmara numa janela debruçada sobre o
Tejo.
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O Pântano
Corri as persianas, tentando refrescar
o escritório. O sol abrasador derretia o alcatrão da Rua. Não
suporto dias assim! Quando me preparava para dormitar, toca o
telefone. Está lá? Estou! Tem que vir urgentemente, o vereador vai
ter esta noite uma entrevista na televisão. A custo reuni o material
do costume, a caixa das ferramentas, o bote, a máscara e as garrafas
de oxigénio. Conferi tudo e saí. Pelo ar grave dos inumeráveis assessores que
o rodeavam, percebi que a coisa era séria. Uma má prestação e era
o seu fim. A afinação do sorriso não trouxe problemas de maior, o
assessor de imagem, nestas coisas não facilita. A drenagem do
cérebro foi mais complicada, estas operações provocam sempre alguns
estragos. O Chefe de Gabinete ouviu resignado a descrição, e por aqui ficamos.
Observei então a garganta, cada vez mais funda. Vesti o
fato de borracha, insuflei ar no bote, e atirei-me lá para dentro,
como eu gosto de fazer. O espectáculo com que me deparei, só por si
recompensava o trabalho que tive.
O pântano estava lindo. Um verdadeira obra de
alquimia, repleta de intensos odores. Os gases
que se acumulavam em certas zonas, adquiriam formas e cores estranhas.
O que mais me fascina nestas incursões é a variedade de espécies em
extinção que aqui se podem encontrar. Não apenas plantas, mas
sobretudo insectos há muito julgados extintos. Desta vez não tive
muita sorte, para além de uma salamandra, o que abundavam eram rãs
ibéricas. A praga do lírios já aqui chegou, anotei no caderno de
notas. Fiz o trabalho do costume e sai. Enquanto arrumava o material, e me preparava para passar a
factura, tratei de sossegar os impacientes assessores. Pode ir, disse
secamente. Virando-me para o assessor de segurança, acrescentei: Não
podem fazer lume por perto. Lá em baixo está acumulado muito metano
e a qualquer momento, pum!. Enquanto guiava o meu velho
carro, no regresso, veio-me à memória a destruição que se está a
fazer do nosso património ambiental. Estes pântanos ocultos também
deviam ser classificados património de interesse público, mas quem
imagina a sua existência?
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Acima de
Toda a Suspeita
"Não ouve ninguém,
decide tudo sozinho", "Nem Pensar! Segue sempre a opinião dos
técnicos." Foi com estas duas impressões, de quem o conhecia de
perto, que comecei a trabalhar na peça para o jornal. A pesquisa no
arquivo deixou-me confuso. A maioria dos construtores civis tinham-no em
boa conta. Metiam os processos de licenciamento na câmara, esperavam
que os prazos de resposta caducassem, e depois obtinham um deferimento
tácito. Mas nem sempre, o expediente funcionava. É verdade que nada
servia protestarem ou solicitarem qualquer esclarecimento. Só quando
não podia deixar de ser é que os recebia, mas depois limitava-se a
ouvi-los. A forma como sempre encerrava estas reuniões ficou célebre
nos anais da cidade: "Não estou aqui por vontade própria, mas
porque todos os dias um motorista me vai buscar a casa". A
sua dureza e distanciamento face aos construtores, acabaram por lhe
granjear um apoio unanime entre os habitantes. Era apontado como o
único vereador que fazia frente à especulação imobiliária que
estava a destruir a cidade e a transformá-la numa floresta de betão.
Nas eleições era um trunfo seguro para qualquer partido.
Foi com grande emoção que
entrei no seu gabinete, a integridade sempre me comoveu, apressei-me a
cumprimentá-lo: "Senhor vereador...". "Mas quantas vezes
é preciso dizer que eu sou canalizador?. Irra que ninguém me
ouve.", ripostou com um ar zangado. Confesso que me assustei, mas
rapidamente percebi a ironia. Sorri. Estava perante um dos raros
políticos com apurado sentido de humor, que exige de quem o escuta uma interpretação
inteligente das suas palavras. Cativou-me de imediato, pela forma descontraída
como me contou a história da sua vida.
O seu problema (entenda-se a carreira
política), começara um dia quando foi chamado a reparar a
canalização duma sala onde se discutia uma lista de candidatos às
eleições autárquicas (entenda-se, foi graças a ele que foi possível
congregar as diversas sensibilidades do Partido, canalizando-as para um
mesmo objectivo ), quando lhe perguntaram o nome disse-o (entenda-se,
não recusou os sacrifícios que o Partido lhe pediu); o Secretário
Geral, num canto da mesa, sem o ver, escreveu o seu nome, julgando tratar-se de um militante (entenda-se,
tinha inteira confiança na sua pessoa). A tragédia começou no dia a seguir às eleições, quando
parou à sua porta um carro para o levar para os Paços do Concelho
(entenda-se, após serem conhecidos os resultados eleitorais em que saiu
vitorioso, arregaçou as mangas e começou a trabalhar em prol dos munícipes). O mal foi quando começou a gastar o
dinheiro que lhe iam depositando na conta bancária. Pensou então se se viesse
embora, podiam pedir-lhe para o devolver (entenda-se, não volta
as costas aos problemas).Confesso que não contive as lágrimas de tanto rir quando, em ar de
desabafo afirmou: "Não me podem atribuir
responsabilidades nenhumas, nunca disse nem sim, nem não. Eles fazem o que querem!". Esta última afirmação, deu-me a ideia para
o título da entrevista: Acima de Toda a Suspeita. |
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Há vidas assim
É o que se chama uma vida sem
história, uma página em branco ainda por escrever.
Na Câmara assistira atrás da sua secretária, a revoluções que abalaram e substituíram
regimes, mas nem a mais leve perturbação lhe conseguiram provocaram. Todos o dias repetindo gestos tão esperados que se tornaram
há muito despercebidos, cinco minutos antes da abertura dos serviços, limpava o
pó das folhas da única coisa que ali perecia ter vida, uma vigorosa Ficus
benghalensis. Sem a mais leve mágoa ou desencanto atendia o mais impaciente
dos munícipes. Meticuloso, como em tudo na vida, apurara o tacto, de tal forma
que sem ler os envelopes sem remetente que acompanhavam os pedidos ou requerimentos
do munícipes, sabia o destino que a estes lhes havia de dar. Á tardinha, quando
todos saíam a correr, como se quisessem agarrar o tempo que haviam ali
perdido, pondo em cada gesto uma segurança que só a eternidade
confere, recolhia as quantias dos envelopes, cumprimentava à saída o guarda de serviço, contornava os Paços do Concelho e entrava nos
escritórios da Fundo Imobiliário Ficus. Dir-se-ia que só o
ambiente mudara porque os gestos não. Aquilo que a outros estimularia
emoção, a aplicação de capitais, a gestão de uma empresa,
era assumido com a mesma bonomia petrificada como quotidianamente encarava todas as coisas. Há vidas assim,
onde não se descobre uma história para contar. |
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O Homem Certo, no Local Errado
Após ler o Curriculum Vitae,
sem pestanejar, o Presidente nomeou-o para um novo cargo. Não
havia na Câmara quem a conhecesse melhor, dada variedade de cargos que
nela desempenhara. Esse facto permitia-lhe ensinar aos diferentes
serviços por onde passava o que de melhor os outros faziam. Todos aprendiam
sempre alguma coisa. Mal chegou ao Direcção Municipal do Património Histórico,
vindo da Direcção Municipal de Limpeza e Higiene Urbana, empreendeu
uma sistemática razia de velharias que descobria por todo o lado.
Velhos edifícios, arquivos e outros monos que atravancavam a cidade
desapareceram num ápice. Não pode concluir o trabalho porque
entretanto fora nomeado para a Direcção Municipal de Modernização
Urbana. Lutou aí como nenhum dos seus antecessores o fizera para a
preservar a Alma da Cidade. Tinha como divisa que qualquer obra que se
fizesse era sempre arrancado um pedaço à memória da cidade.
Quando saiu para Direcção Municipal do Transito fez dos símbolos da Modernidade
- o automóvel
e as vias para a sua circulação - o seu programa de acção. A cidade de um
dia para o outro acordou apinhada de automóveis, rasgada de vias rápidas,
esburacada de parques de estacionamento, coberta por uma camada espessa de
resíduos de tubos de escape. E assim prosseguiria a sua brilhante
carreira de dirigente autárquico, não fosse esta interrompida por um infeliz
acontecimento. Há muito que deixara de andar a pé pela cidade, mas
quando foi nomeado para Director Municipal do Desporto, por sugestão dos seus
assessores resolveu praticar este acto natural. No íntimo continuava convencido que os passeios eram para os peões e
as ruas para os carros. Bastou percorrer meia dúzia de metros e zás,
foi atropelado mortalmente em pleno passeio e logo à porta da peixaria do bairro, por um possante "jeep"
que nele circulava.
Carlos Fontes | |
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