Um caso que ainda hoje faz correr muita tinta nas academias
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Corria o ano de 1965 quando foi descoberta uma obra que veio revolucionar a história da cultura em Portugal. O banqueiro Miguel Quina, Conde a Covilhã, do Banco Borges & Irmão apressou-se a comprá-la, esperando ganhar bom dinheiro com a sua venda ao Estado. A Universidade de Lisboa (UL) fica precupada com a sua eventual saída do país. O ministro da Educação ordena que o director da Biblioteca Nacional, Manuel dos Santos Estevens, a arrole a favor do Estado. A Polícia Judiciária, no encalço dos anteriores proprietários, bate à porta do número 26, da Rua Afonso Lopes Vieira. A imprensa acompanha o caso. Aires A. Nascimento (A.A.N.), prestigiado catedrático da Faculdade de Letras da UL, publicou recentemente um livro - Elogio do Livro e do Leitor. Em Evocação de José V. de Pina Martins -, com importantes achegas sobre o caso e os seus protagonistas.
Antecedentes. Até 1965, as atenções de historiadores e filólogos estavam concentrados no Livro da Vita Crhisti, de Ludolfo da Saxónia (c.1300- 1378), que se supunha ser a primeira obra imprensa em Portugal. Foi editada em 1495, por Valentim Fernandes, a mando e à custa da real fazenda pela rainha Dona Leonor. Representava a entrada de Portugal, numa arte que revolucionou a cultura mundial: o livro impresso !. Os seus quatro volumes, 1060 páginas, requereram um trabalho impressionante e sofisticado. Era também uma das primeiras traduções completas em vernáculo desta obra, atribuida por A.A.N. ao rei D. Duarte ou ao seu circulo (Didaskalia, XXIX,, 1999, pp.563-587).
Primeiro Protagonista: Pina Martins. É ele quem divulga o livro que acabara de ser descoberto. Exige três horas para o estudar, para depoiis escrever um artigo no Diário de Noticias, tendo recebido como recompensa do alfarrabista 15 contos (p.129). A.A.N., no seu livro traça o singular percurso deste avaliador: Nasceu em Penalva de Alva (concelho do Hospital). Estudou no seminário de Coimbra,e em 1941 ingressa na Universidade para tirar o curso de Filologia Românica. Por esta altura é um activo militante do CADAC, afirma-se "monarquico corporatista", e inicia a publicação ao longos dos anos de mais de 70 títulos sob o pseudónimo de Duarte de Montalegre (p.29). Apresenta duas teses de licenciatura, mas a nota que obtém, desilude-o. Entre 1949 e 1955, é leitor de português na Universidade La Sapienza de Roma, onde conhece a sua esposa (Primola Vingiano), filha de um almirante Mussoliniano. Em Itália, no contacto com livreiros adquire o amor pelos livros impressos dos séculos XV e XVI, e figuras do ranascimento como Pico della Mirandola, Angelo Poliziano e humanistas portugueses. Na Rádio do Vaticano, onde colabora, em 1954, envolve-se em polémicas, tendo saido em defesa de Ezra Pound, preso nos EUA, um conhecido admirador de Hitler e Mussolini. Está na Universidade de Poitiers, entre 1955-1959, como leitor de português, onde projecta pela primeira vez inscrever-se num doutoramento. Aqui acabou por criar também atritos, nomeadamente quando ficou com incunábulos da biblioteca (p.37).
O livro de A.A. N. revela-nos, importantes informações sobre o início da Faculdade de Letras no Campo Grande. O edificio, projecto de Pardal Monteiro, foi inaugurado no dia 18 de Outubro 1958, dia dedicado a São Lucas (p.35). Vitorino Nemésio, esqueceu-se da data e não esteve presente, chateado, demitiu-se de director. Orlando Ribeiro que o substitui, também acabou depois por o fazer, mas em verso. Desde 1957 estava em curso uma importante remodelação dos cursos, conduzida pelo vice-reior António Gonçalves Rodrigues, que Pina Martins conhecera em Coimbra. Foi ele que o convidou, em 1960, para assistente na Faculdade, a leccionar História da Cultura Moderna.
Segundo Protagonista: o Livreiro Lisboeta. Na opinião que regista no seu Diário, os livreiros são uns "ciganos","incultos" e, como veremos, uns trafulhas. A paixão que alimentava pelo livro impresso antigo, levam-no a entrar no mercado livreiro, comprando e vendendo livros, ao mesmo tempo que vai constituindo uma magnifica biblioteca que causava espanto a quem a conheceu. Não tinha dinheiro para um tapete, lamento da esposa, mas arranjava-o sempre para adquirir um novo livro antigo. De forma metódica, regista os livros que lhe
vêm ao seu caminho, os livreiros com que negoceia, numa obra que tencionava publicar. A.A.N., ao tomar conhecimento do manuscrito, promoveu em 2005 a sua publicação: História de Livros para a História do Livro. Antevendo provavelmente criticas futuras, Pina Martins, deu nomes fantasiados a livreiros, alfarrabistas, antiquários e outras figuras e até edificios e monumentos. A.A.N., na presente obra, revela a verdadeira identidade destes nomes.
Terceiro Protagonista: Tracísio Trindade. Com casa aberta desde 1960, na Rua do Alecrim, 32-36, merece de Pina Martins, uma apreciação positiva, Tarcísio descobre que entre os livros que adquirira, estava um incunábulo em português, intitulado Tratado de Confissom, impresso em Chaves a 8 de Agosto de 1489. Tinha em seu poder o livro mais antigo impresso em Portugal. Pina Martins, entra em jogo, para o valorizar, escreve, como vimos, um artigo no suplemento cultural do Diário de Noticias. Começa a especulação. Um banqueiro por interposta pessoa compra o livro, dando 360 contos para o Tarcísio e 40 contos a João Pires, do Mundo do Livro que, de acordo com o combinado, irá aparecer como o dono do livro. O Estado quer conhecer os seus anteriores proprietários. João Pires fabrica a primeira versão, dando a morada da suposta proprietária na Rua Afonso Lopes Vieira, que se revela falsa, e é preso. O banqueiro liberta-o, dando-se a conhecer. O livro será vendido à Biblioteca Nacional de Lisboa por largos milhares de contos.
O mistério permanece. Quem tinha antes? As versões sucedem-se. Tarcísio, por exemplo, irá afirmar que o encontrou numa casa de aldeia a calçar um pipa, entre outras versões que foi imaginando.
Fama e Mudança para Paris. Pina Martins é agora uma autoridade sobre os incunábulos e o renascimento, mas na faculdade não passava de assistente, porque não possuia um doutoramento.Em 1972, surge a saida para situação em que se encontrava. Veio de outro amigo de Coimbra: J, Verissimo Serrão que lhe deu a possibilidade de o substituir à frente do Centro Cultural da FCG em Paris. Pina Martins fez uma excelente trabalho, nomeadamente na dinamização das publicações. Resolveu também a questão do doutoramente, beneficiando da generosidade da Sorbone, que com base no que havia já publicado lhe deu o título de doctorat d`équivalence (1973). Serrão, como reitor da Universidade de Lisboa, celebrizou-se por colaborar com a Ditadura na repressão dos estudantes. O Problema do Colofon. Um nova descoberta vem empalidecer a de 1965: a descoberta do Sacramental de Clemente Sánchez de Vercial, impresso também em Chaves, em 18 de Abril de 1488, por João de Oviedo. Pina Martins reage, pois o colofón que lhe é atribuido, é uma alegada transcrição feita em 1845 por Francisco Freire dde Carvalho, cónego de Lisboa. Não a aceita como prova. Em 1982 regressa a Lisboa, é acolhido na Faculdade de Letras. Assume o cargo de Director de Serviços de Publicações da FCG, onde realiza outro notável trabalho. É também nomeado presidente da Academia das Ciências, e não lhe faltam prémios e homenagens.
E a Biblioteca? Chegados a este ponto, nesta breve sintese do livro de Aires A. Nascimento, o leitor está a interrogar-se por onde andam os livroe de Pina Martins?. A esposa e a filha queriam vendê-los a retalho para arranjar dinheiro. Esta última para adquirir uma apartamento no centro de Paris. Por ironias do destino foram adquiridos, em 2008, por Ricardo Salgado para o Banco Espírito Santo. Quando este banco abriu falência, os livros passaram para o Novo Banco que em 2022, os depositou na Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa.
Fazem parte desta biblioteca cerca de 1100 obras de Livro Antigo, onde se destacam os 8 incunábulos, cerca de 90 obras impressas pelo humanista Aldo Manuzio e seus sucessores e os 600 títulos impressos no século XVI. A restante bibliografia de cerca de 8600 títulos serve de apoio ao estudo dos textos clássicos e das suas temáticas.
Se o leitor quiser saber mais destas e muitas outras novidades, o melhor é adquirir o livro de Aires A. Nascimento, nas Edições Colibri. |