Roteiro Sentimental

Rui Gonçalves

 

À pergunta se conhecia o pombal do Senhor Joaquim, o Rui Gonçalves respondeu-nos sem hesitação:

"Da rua 6 (Rua João Lúcio), conheço toda a gente e é também recíproco. Se conheci o pombal do Sr. Joaquim ? Sim e o do Sr. Américo também. Não é que eu estacionasse nas traseiras, mas as cagadelas dos pombos em exercícios diários fazendo círculos ali á volta, foram marcando a pintura do meu carro. Se o Cortina Lotus era encarnado como cor de base, depressa ficava como carro militar. Pois, o Ti Jaquim Soares que morava na nossa rua, tinha o mesmo hobby que o Sr. Américo do meu prédio. O que fazia dois pombais a uns metros de distância. Acordavam toda a gente bem cedo, com os foguetes e bombas de Santo António. O 13 de junho era o ano inteiro. Isto com a intenção de não os deixar poisar e acelerar o movimento. "

O Cortina Lotus que servia de alvo para os pombos

Os pais do Rui Gonçalves vieram ocupar as primeiras casas que foram construídas no Bairro de Alvalade: "As casas foram entregues aos nossos pais e avós que foram os primeiros a ocupá-las. Poucos já tinham filhos ou filhas e se tinham eram pequenos. "

Não foi necessário perguntarmos por outros moradores da Rua 6, porque já nos estava a referir um por um, personagens deste roteiro sentimental, como se verá.

"O Zé da avó, alcunha que ficou, pois ainda hoje estou a vê-la (a avó do José Silva) á janela do r/c esquerdo do meu prédio (nº.8). A Maria Emília faz parte das pessoas que ainda ali vivem e claro sempre em contacto comigo, como todos os que ali moraram. Quer seja os filhos do Sr. Joaquim (Tony e Zé Manel) que vieram para a França. O Fernando Fonseca que foi para a Austrália ou dos filhos da Teresa que foram para os USA. O Fernando era de 1952 acho eu, tenho que perguntar ao Irmão ou á Irmã. Eu sou de 51 e vim para França em 1970. Sempre mantivemos os contactos, pois foram relacionamentos de várias gerações. Avós, pais, nós, filhos, netos e certamente que vamos continuar com os bisnetos."

"Assim nasceu a geração entre 1949 e 1960. Cada um dos 10 prédios com filhos da mesma idade, mais ou menos. Andamos todos nas primárias masculinas ou femininas no topo das nossas traseiras. Esfolámos cotovelos e joelhos nos escorregadios e tubos de pedra, que tínhamos no jardim que ali existia. Depois Eugénio ou Camões segundo o recheio da carteira paterna. Veiga Beirão, Ferreira Borges ou Afonso Domingos consoante as opções comerciais ou industriais. As meninas seguiam para o Liceu Rainha Dona Leonor, ao  fim da rua Marquesa de Alorna. Nada de as seguir ou esperar por elas á saída. Nem precisávamos, a não ser para nos apresentarem as colegas. Elas sempre participaram nos jogos na nossa rua, onde no largo os rés do chão dos números 3 e 4 eram os melhores clientes do vidraceiro. O estádio José de Alvalade não nos era acessível."

O leitor já percebeu a razão do convite a Rui Gonçalves para escrever as suas memórias no Jornal da Praceta. Não se fez rogado e em breve recebemos os seus primeiros textos.

Jardim da Celeste

Rui Gonçalves

Se o nosso Jardim da Celeste soubesse ... Do sitio que mais utilizavamos como campo de futebol. Além de ter as estruturas adequadas como bancos para os eventuais espectadores, tinha também um pequeno chafariz. Os jogadores podiam assim beber à vontade. 

Possuia várias possibilidades de fuga, no caso da policia viesse interromper os jogos proibidos. Entre a rua 6 e a rua 7, com acesso directo às portas das nossas traseiras e também para o caminho que subia para a escola 33. Tudo era proibido. O local era o ideal e assim foi testemunha de pontapés falhados, calças rasgadas e tornezelos doridos. 

Abandonado e invadido por barracas de quintal, devido à falta de espaço nas nossas casas. Foi morrendo aos poucos e só servia de passagem.

A revalorização dos quintais no nosso bairro, veio a dar uma nova vida ao local e aos nossos logradoros. Baptizado de Celeste,  fez-me logo lembrar da tal cantiga infantil. Mas que origem tem esse giroflé, giroflá ?

Em 1616 foi publicado e Strasbourg um livro escrito em alemão com o titulo de Chymische Hochzeit Christiani Rozencreutz anno 1459 (As bodas químicas de Cristiano Rosa Cruz). Sem nome de autor verdadeiramente dito, mas suposto que Johann Valentin Andreae o fosse. Obra codificada, como livro esotérico. 

Rapidamente aparecem outras obras e canções. Giroflée, giroflá aparece ... 

 Fui ao jardim da Celeste,

giroflé, giroflá,

 Fui ao jardim da Celeste, 

giroflé, flé, flá.

 O que foste lá fazer? 

giroflé, giroflá, 

 O que foste lá fazer? 

giroflé, flé, flá.

 Fui lá buscar uma rosa, 

giroflé, giroflá, 

  Fui lá buscar uma rosa,

giroflé, flé, flá.

 Para quem é essa rosa, 

giroflé, giroflá,

 Para quem é essa rosa, 

giroflé, flé, flá.

 É para a menina Cruz, 

giroflé, giroflá, 

 É para a menina Cruz, 

giroflé, flé, flá. 

As traduções em françês e noutras línguas só mais tarde serão feitas. A ópera GIROFLÉ-GIROFLÁ em três actos de Charles Lecocq é representada em Bruxelles em 1874, exactamente no dia 21 de março (equinócio da Primavera). Esta obra baseada num conto alegórico e simbólico, fala de duas irmãs gémeas que se vão casar. Uma de AZUL e a outra de cor de ROSA. No espectro das cores o azul tem a frequência que vai de 612 a 643 THz. Newton simbolicamente adiciona uma sétima cor ao arco-iris próxima do azul, o Indigo. O que nos faz duvidar se o tal arco tem seis ou sete cores. Newton faz-nos refletir sobre o visível e o invisível. Para os alquimistas o azul e o rosa tinham grande importância. 

Ainda hoje utilizamos essas duas coras para definir o masculino e o feminino. O termo como coro de canção é utilizado em várias línguas. Sempre em canções populares, mas simbólicas. A poeta alemã (Rosa) HOLT escreveu uma canção pacifista, durante a ascenção do nazismo a que chamará Giroflée, GirofláYves MONTANT nos anos 50 vai interpretá-la em francês. 

Giroflée que vem de girofle (cravinho em portugues), a planta tem um cheiro anastésico. Matthiola Incana em latim, Giroflée tem a gama completa de todas as nuances do cor de rosa e as suas folhas possuem glycosideos com propriedades cardiotonicas. Os alquimistas utilizavam-na com frequência. Giroflé, Girofla que vais ao jardim CELESTE, buscar a ROSA para a CRUZ.

Março, 2024

No relvado verde

Rui Gonçalves

Ao lado da fotografia do Fernando VILHABOL, estava um pequeno artigo escrito por um jornalista do Diario Popular, em meados dos anos sessenta. Entrevistas que faziam à saía dos jogos de futebol.

- Como achou este jogo do Sporting ? Perguntava o jornalista. A resposta estava recheada de palavras que elogiavam a equipa e davam um grande valor à exibição realizada. As impressões do Fernando que se exprimia com palavras de sete e quinhentos é que surpreenderam a maralha da nossa rua.

Neste artigo o Fernando confessava com grande emoção a exibição do Sporting, no relvado verde. Pleonasma utilizado pelo tal jornalista, talvez daltónico de nascença. Claro as más linguas, sobretudo a do Ermelindo, não falharam de rizadas e comentários criticos. Relvado verde ? Bolas, conheces algum relvado de outra cor ? E vai de passear o jornal de mão em mão, com as gargalhadas habituais .

O Fernando respondia que não tinha dito nada disso e como fui testemunha da tal entrevista onde nos perguntaram : - Vocês gostaram do jogo ? O Fernando sintetizou e respondeu : - Gostei. Vai daí uma foto e pimba, eís o trabalho pesado e embrulhado. Bem que o estádio José de Alvalade fosse o mais próximo das nossas residências, o certo é que a maioria dos seus moradores ou talvez a sua totalidade eram ferranhos do Benfica. Claro, era o clube que ganhava ao nível nacional e internacional. Todos o adoravam em frente das poucas televisões, que por ali existiam. Deslumbravam-se perante um relvado a preto e branco, com uns tons acinzentados.

Todos, todos ? Talvez não. Pois havia alguns renegados que torciam por outras equipas. Os que vinham do Norte, eram portistas, mas em silencio. Alguns por terem morado perto de Belém, gostavam do Belenenses e outros eram amarelos do Atlético. Do Sporting só conheci um e gritava-o bem alto.

O Senhor Vilhabol (pai) que já treinava a voz nas vendas de roupa, no mercado de Alvalade,  não falhava a sua presença todos os quinze dias no José Alvalade. Pouca oportunidade tinha de ver os jogos, pois de costas para o campo vendendo sandes, bojecas, sumois e pirolitos. Passando entre as bancadas e ouvindo pela mesma ocasião os comentários, dos grandes peritos deste desporto. Encontrar entre os vários milhares de pessoas nestes locais, 22 pessoas que compreendessem o que por ali andam a fazer, já não era nada mau. Entre o árbitro que é corno ou talvez descendente de uma senhora de má vida, os elogios eram de preste.

O lagarto do Vilhabol não suportava nada comentários negativos, dirigidos contra o seu clube e uns tabefes poderiam surpreender os comentadores. Resultando gritos de parte a parte, puxões e empurrões. Gafanhotos e cuspidelas saíam daquelas caras já coradas pela exaltação. A mercadoria era a que mais sofria e não era raro encontrar umas sandes de fiambre já um pouco espalmadas, dando-lhe um gosto especial dado à manteiga ter penetrado mais do que previsto na seca carcaça. Nada de reclamações, senão teriamos tourada pelo mesmo preço.

Vedetas sempre tivemos na rua mais estimada do nosso bairro. Pequena e diferente de todas as outras, que sempre atraiu a miudagem dos arredores. Rua a subir ou a descer segundo as gerações. Os pais desciam para ir trabalhar, os filhos subiam para ir para o largo ou para as traseiras brincar.

Ali nascemos, ali fomos criados, ali fizemos as verdadeiras amizades para a vida e ali ainda nos encontramos depois de tantos anos. Mesmo aqueles que fizeram as vidas longe, não deixam de ter aquele local atracado em permanência nos subconscientes. Almoços e jantaradas ainda perduram regularmente e quem vem, vem. Pergunta-se uns pelos outros, verifica-se o branqueamento das cabeleiras, pelo menos daqueles que ainda as têm e não se fala de prostates, de dores reumáticas, nem de regimes alimentares. Emborca-se. Come-se como alarves. Contam-se as mesmas histórias, mas com versões sempre modernizadas.

A alegria é permanente e faz-nos esquecer que o nosso encontro mais reçente ... foi ontem ! Pois o tempo é imutavél. A falta de alguns é sempre notificada. Quem tem notícias ? Quem o viu ultimamente ?

No ano passado (2023) fui ao almoço, pois estava em Portugal. Do nº. 10 quase todos apareceram, foi a porta mais representada. O Helito que mora nos Arneiros não tive as coordenadas para o contactar e o Fernando já não o via há uns largos anos. A última vez que nos encontramos ele e eu passamos pela rua sem razão aparente. Olhamos para as varandas e janelas e ai revivemos as nossas infâncias. O Fernando como de hábito, todo classe. Sempre fez questão de ter uma exigência vestimentar, o que lhe dava um ar dandy.

Nem sempre o pessoal podia investir em compras nos Profirios. Loja da baixa que tinha um avanço na nossa época, pois fornecia-se em Londres na Carnaby street. A parte do período da “casa da velha”, termo encontrado já não sei por quem e que nem sabiamos se algures alguma senhora idosa por ali viveu. Segredo, é segredo e não vou divulgar onde se situava, mas já lá vamos.

O encontro diário na nossa rua, de toda a malta, alterou-se com o desaparecimento de um a um. Mas para onde eles foram ? Já há uns dias que não se vêem ! Dois, quatro, oito, dezasseis ... eles foram desertando. Estranho ? Paralelamente começaram a apareçer à noite no café Tatu, vestidos de calças Lewis e de camisas cor petrolio. Mudanças de roupa regulares e de cores cada vez mais acelerativas. Normalmente vestiam sempre a mesma roupa até se começar a ver os tornozelos ou os punhos, dado ao crescimento mais rápido que o renovamento da “garde robe”. E o cacau, o nervo da guerra, vinha de onde ? Começaram a dizer que agora trabalhavam, bom ! Rapidamente foram seguidos no seu caminho, para o trabalho. Andavam aqueles mangas a desossar um palácio. Vai de tirar chumbo, torneiras e punhos de portas. Em pouco tempo a tal casa da velha parecia uma vivenda do bairro chique de Beirut, após a guerra civil. Dali se saia para pertp do aeroporto, onde uns compra-métais pouco escrupolosos e sem verdadeiramente perguntarem a origem do fruto do tal “trabalho”.

Do Tatu podia-se passar para o café VÁVÁ na avenida dos EUA, sem complexos alguns. Todos andavamos bem vestidos. O negócio teve fim, não por falta de material, nem por descoberta. Foi simplesmente por causa de uns vaidosos, que entravam em casa com roupas novas todos os dias e que as nossas velhotas teriam que lavar. Os “trabalhadores” em todo o caso chegavam cansados a casa. Deu bronca e inquéritos familiares. Até as nossas mães queriam ir connosco aos Profírios, na Rua da Vitória, devolver tudo. O Xico do Campo Grande e mais dois fugiram para o Algarve. Tive que eu e o Machadinho ir buscá-los à Praia da Rocha.

Aventuras sempre tivemos. Geração desenrasca. De cinchadas nas árvores de fruta bem verde, que faziam de rápido laxativo. Vendas de cartões a perfurar com um grande prémio a sortear, mas que era sempre o nosso primo que ganhava. Aluguer de bicicletas e motas perto do lago do Campo Grande, só por meia hora, e vai de desaparecer. Coitado do homem sempre à nossa procura,  sobretudo das motas. Nunca utilizávamos os transportes em comum, eramos finórios. Táxi, sim táxi. Faz favor senhor chaufer, para o número 7 da rua Antónia Pusich. Espere um pouco, enquanto subo buscar dinheiro para lhe pagar. Entrada pelo 7 e saída pelas traseiras. Ali ficava o pobre à espera até desligar o Mercedes 190, para andar a tocar às campainhas.

Piratas, mal honestos, bandidos ?. Não, apenas uns adolescentes que se habituaram a viver juntos. A nossa família era a rua. Todos da mesma geração, pois nosso pais inauguraram o bairro e tiveram filhos e filhas ao mesmo tempo, ou com pouca diferença de idades. O nosso bairro é um paradigma, que deveria repetir-se noutros lugares. Hoje os alojamentos sociais criam ghettos .

Nós jogavamos à bola, com um olho na vinda da polícia. Não tinhamos infra-estructuras nenhumas. Uma pedra, um berlinde chegava. Mais tarde um candeiro para se encostar e aí refaziamos o mundo, deixando as nossas imprecações genéticas nas escarradelas dos passeios.

Vivemos e fomos felizes. Quando algum de nós parte é uma grande parte de nós mesmos que se vai. Fernando até ao nosso próximo encontro, de frente a um relvado. Desta vez azul, azul lá de cima de onde continuas a ver-nos.

Março, 2024

Os três estrelas de ALVALADE

Rui Gonçalves

Foram tocar viola à Televisão. Em 1962 poucos anos depois do aparecimento da Radio Televisão em Portugal, o facto de aparecer no pequeno écran era um evento de grande dimensão.

Aos famosos cowboys da Bonanza, passando pelo Doctor Kildaire e não esquecendo o espião The Saint, juntou-se um grupo da nossa malta.

Uns meses antes a nossa rua iluminou-se com uns gritos melodiosos de um Calo a subi-la e cantando agarrado a uma « viola » de pau. Ele mesmo a tinha fabricado com um pedaço de madeira e umas cordas. Se dali não saía nenhum som comparado com as Le Paul das Gibson ou outras guitarras famosas, o que era certo é que o talento do CALO a cantar abafava o resto. Da rua passou para as traseiras, pela escada do 10. Se me espantei com o som que me vinha da rua e que momentaneamente desapareceu, mais surpreendido fiquei quando o ouvi outra vez nas traseiras. Tony, Zé-Manel, Cascao, Elito e Calitas que ali já se encontravam abasbacados com o show e que vão de encorajar o Calo. – O pá canta outra, vai mais uma, tens que ir à televisao. Como eu sairam muitos à rua ver o que se passava. O Calo já dizia – Eu vou à televisão, eu vou à televisão.

Não sei se é o meu espírito de ir para a frente, de empreender e organizar sem grande receio que levou logo a meter-me na coisa. Havia vários ali presentes, mas por que raio fui eu a dizer. - Vamos à televisão, Calo. Vamos cantar na televisão.

Nos dias que se seguiram começamos a sonhar e a organizar as coisas. O Calo cada vez cantava mais. Eu que nunca tinha cantado para ninguém, graças a Deus. Pois a minha voz naquela altura tinha o mesmo nível que tem hoje, ou seja nenhum.

Qual era o problema ? Nenhum para mim, claro. De umas caixas de Ovomaltine que lá tinha em casa, faria umas marimbas. Ovomaltine porque a coitadada da Dona Piedade, minha mãe, não parava de me dar fortificantes, copos de leite e outras coisas na esperança que eu fosse engordando um pouquito, magricelas que era.

Dois paus pregados nas tampas das caixas, uma mão cheia de milho em cada uma e ai está uma ritmica feita. Um terceiro parceiro juntou-se a nós.

O Zé-Alberto que morava no prédio do Nhaca, que além de ser da nossa rua andava na mesma classe que eu na 33. Também tinha andado comigo e o Calo na primeira classe. Mas quem é que não andou com o Calo na primeira classe ?. Eu quando para lá fui,  já ele là estava, quando saí por lá ficou.

Portanto, o Zé-Alberto era o parceiro ideal para completar o que havia de ser um trio. O seu desengonçar natural, os jeitos assimétricos dados ao crescimento irregular dos rapazes da nossa idade, assentava-lhe que nem uma luva ao Éu "alcunha de "Zé-Alberto" (1), só lhe faltavam umas marimbas nas mãos. Coisa feita !

Continuo a não preçeber o que eu estava a fazer naquele grupo, mas enfim. A medida que os dias iam passando, o nosso reportório ia aumentando e o fan-club também. Inchados pelos encorajamentos da maralha, aí fomos até a Alameda das Linhas de Torres decididos a passar em directo naquele domingo à tarde. Claro que nos receberam encantados com três miúdos decididos a serem umas vedetas. O Calo com a viola de pau, fazia a admiração do pessoal. – Canta aí, canta aí mais outra. De ali não saímos sem a firme convicção que poderíamos passar na televisão. Fomos mesmo ver o José Viana, que nos prometeu que iriamos voltar e que cantariamos. Promessa realizada. Ao voltarmos à rua, já eramos umas vedetas. A partir daí a nossa popularidade não parou de crescer. Todos e sobretudo todas, não falavam que senão disso.

A aparição da nossa maior fã, a Esmeraldina « palito » dado as suas pernas fininhas, foi para o grupo que como um cabelo na sopa. Do signo do Leão, a Esmeraldina como todas as leoas tem de brilhar. Numa festa dada em minha casa, onde todos foram convidados, não vai que a nossa Esme se sai com esta. - Vamos para o teu quarto e eu vou-vos ensinar a dar beijinhos, na boca. Eu no momento estava mais preocupado com a minha posição no grupo que com outra coisa. Francamente ainda não sabia o que eu por ali andava a fazer. A minha curiosidade permanente, me fez ir à descoberta dos tais xouxos. Que já tinha ouvido falar lá na escola primária 33, isso e outras coisas mais, por rapazes repetentes da quarta classe, grandes peritos nas questões que se relaçionavam com o sexo. Claro sem o terem praticado. O mais afoito foi o Bexiga que se lançou em primeiro. Encostados a porta do meu quarto, não fosse alguém apareçer, colaram-se um ao outro, mas nada mais. Agora é a tua vez, diz-me a Esmeraldina passando o punho pela boca. Lá fui confiante para conheçer algo de novo. Bem depressa me arrependi ao sentir a falta de ar.

Um médico destraído lá do bairro tinha-me confundido com um outro puto homónimo, uns anos antes. Fui enviado directamente da escola para o Hospital da Estefânia, para ser operado a garganta e ao nariz. Ao chegar ataram-me as mãos atrás das costas e sentaram-me numa bancada onde uns quantos estavam a berrar. Aí passa um enfermeiro, acho eu sem diploma, que ía dando uns estalos pontuados de uma frase. – Cala-te cabrão ! A seguir abria-nos a boca e um médico velhote, talvez também sem diploma, metia-nos uns ferros que me deram vómitos e desmaiei. Depois disso não consigo respirar pelo nariz, o que traz-me sempre problemas quando vou ao dentista, quase que afogo. Imaginem a Esmeraldina tapando a minha única entrada de ar. Assustei-me, não achei graça à coisa. Mais tarde, não muito, mudei de opinião. O problema é que a Esmeraldina a partir daí tinha um ascendente sobre todos aqueles com quem tinha trocado uns micróbios babosos. Quis fazer parte do grupo, não esqueçer, um TRIO. Ela tinha todos os argumentos necessários para nos convencer. De facto, sou o primeiro a confirmar, que a Esmeraldina também se desengonçava e talvez melhor que o Zé-Alberto e trazia uma « touch » feminina au grupo.

Quem devia sair para manter o Trio ? O Zé-Alberto ou eu? A minha falta de ar naquele xouxo falhado, levou a Esme tirar o Zé. Já lhe pedi desculpa uns anos depois, durante um jantar de convívio. Continuo a pensar que não fomos nada correctos com ele. O trio formado, recebemos um telefonema da TV, para irmos aprender a tocar viola …Sem duvida devido à « couragem » dos productores de emissões que se cagaram com umas vedetas de 11 anos de idade e com violas de pau.

A minha mãe meteu as mãos à carteira e inscreveu-nos numa escola de música na João XXI. Comprou-nos duas violas, que a mãe do Calo foi pagando pouco a pouco,  a Esmeraldina ficou com as Ovomaltinas. Umas semanas depois aparecia-mos os três estrelas de Alvalade, de camisola azul clara e com uma estrela amarela no peito. Ideia do meu pai que não estava muito de acordo com a palhaçada e sabendo o talento do filho para a canção. Vai de nos meter uma estrela de David, como para marcar a nossa pertença ao marranismo. O José Viana, como prometido, recebeu-nos no seu programa. BI BA BE LULAS, cantamos uma adaptação da canção de Gene VINCENT -  Be-Bop A Lula… She’s my baby.  Acabando a nossa actuação com um ALECRIM AOS MOLHOS, mais adaptado aos nossos sotaques nacionais.

(1) A alcunha do Zé-Alberto, que ainda lá mora na nossa rua é bem Éu. Porque o Zé sempre falou de si mesmo na primeira pessoa do singular e bem acentuando o É, de eu. Esticava mesmo essa letra o que fazia alongar e aumentar o tempo de a pronuncia. Éeeu fui tomar un café au Taru, dizia ele naquele tempo e assim ficou.

O Senhor Vasco e a Dona Rogélia

Rui Gonçalves

A dona Rogélia, uma senhora bemposta, bonita e vistosa. Os seus cabelos e olhos claros iluminavam o seu rosto sempre sorridente e que nos falava, a nós gaiatos, com um prazer não dissimulado.

O marido, o Sr. Vasco, trabalhava no meio aeronáutico no aeroporto de Lisboa. Nunca aquele homem subiu a nossa rua sózinho, mal aparecia lá ao fundo que desencadeava imediatamente uma corrida coletiva da nossa parte. Os seus bolsos cheios, não por muito tempo, de bugigangas publicitarias das companhias aéreas, algumas que hoje já nem existem. Badges, emblemas, limpa mãos com cheirinho a limão da PAN-AN, VARIG e tantas outras companhias, eram distribuídas rapidamente entre as crianças ali presentes que o acompanhavam com gritos de contentamento, na subida da rua.

Nunca o Vasco se esqueceu de trazer coisas para os miúdos da nossa rua e se por acaso algum por ali não estivesse, havia uma segunda distribuição, mas desta vez enviada pela varanda do segundo andar, como uma bênção papal pelo seu filho o Fernando «Bogas». Os seus direitos principais lhe conferiam a vantagem de ter uma coleção lá em casa. Então vai de mandar lá para baixo pró pessoal que não parava de tocar à campainha do 2° Dto. Era uma festa ritual que me faz sempre pensar neles, cada vez que piloto um avião vestido com uniforme e meto as minhas insígnias.

Anos depois, durante umas férias em Portugal, encontrei-os ao princípio da nossa rua. Eu ia a descer e eles começavam a subir. Falamos uns momentos por prazer mútuo e claro que não hesitei a fazer 180° de meia-volta para os acompanhar, lembrando-me dessas reminiscências. O Sr. Vasco com tristeza contou-me que já ninguém o acompanhava naquela subida cada vez mais difícil para as suas pernas, às vezes carregados com umas compritas alimentares.

O pessoal cada vez mais amnésico passavam por eles, muitas vezes sem lhes falar. Deve ser da vergonha que eles têm de nunca lhes terem agradecido verbalmente da felicidade que eles nos davam naquelas pequenas lembranças. Obrigado, SENHOR VASCO e DONA ROGELIA.




Jogos de rua

Rui Gonçalves

As caricas eram mais do que um brinquedo. Necessitavam de uma participação colectiva. De uma construção de grupo e de um período anual. Como o amolador do Porto, que passava uma só vez ao ano, para afiar facas e tesouras e capar gatos. Esse nosso período anual das caricas era uma excitação geral. Em primeiro lugar a recuperação das tais. Como nós ainda não bebíamos bojecas, tinhamos que andar á coca delas, antes que elas fossem parar nos caixotes do lixo. A Dona Julieta era a minha fornecedora, pois era grande apreciadora de Sagres com torresmos. Aliás que transmitiu-me esse prazer que ainda hoje tenho. Penso sempre nela e no Sr. João e no Jaime Neves Carvalho que também continuava a tradição. Voltando ao material de base. Tínhamos então a seleção das tais, nem todas serviam. O pessoal abria as garrafas com o abridor, outros nas pontas das mesas e alguns hoje desdentados abriam-nas entre os dentes. Resultava que a maioria da colheita, vinha dobrada ou com a coroa torta. As perfeitas eram raras, como as que hoje se utilizam de desenroscar. A carica possuía uma rodela de cortiça no interior, que nós recuperávamos religiosamente. A fase seguinte consistia na espera do começo da volta a Portugal em bicicleta.

Desde que o jornal desportivo começava divulgar a composição das futuras equipas, vai de principiar a recuperação dos nomes citados. Que nos serviam para fazer uma facha fina e preciosa. As cores das equipas, que nós respeitávamos escrupulosamente, vinham da recuperação dos maços de tabaco vazios que os fumadores na altura perdiam na nossa rua. Todos já nessa época conscientes das preocupações ecológicas, nunca lhes passaria pela cabeça de os deitarem para o chão e em qualquer lugar.

A capa transparente que protegia os pacotes mais finórios, também era recuperada. Os mais escassos financeiramente, fumavam provisóriamente Definitivos e outros definitivamente Provisórios, estes quase só cartão. Os mata ratos dos Kentuckys eram reservados aos putos que se iniciavam no mundo do fumo, este contudo, não tinham Selofan brilhante. Até nem compreendo como mais tarde continuaram no vício, pior não existe. Como podem ver só a angariação do material necessário, era um árdua tarefa. A fase final consistia em decorar a pastilha de cortiça, com as cores imprimidas nos bocados de cartão recuperados dos maços.  Por a fita com o nome do corredor, por cima e finalizar com o Solofan.

O efeito era perfeito, permitindo refletir os raios do sol, na volta ao largo da rua 6. Da escola 33 trazíamos uns bocados de giz branco,  se o conseguiamos  também a cores. Bocados que cagavam mãos e algibeiras e incriminavam quem os tinham gamado. O giz branco servia para riscar o chãos e limitar o circuito, a cores marcava as metas, prémios de montanha e até poderíamos desenhar publicidades. Cada um tinha a sua equipa e técnica de deslizo, mas o grande segredo era dar a força justa ao largar o dedo médio, preso pelo polegar. A carica só esperava essa impulsão para partir em sprinte, mas sem sair do traçado. Jogos de rua que evitavam que as nossas respectivas mães tivessem que escrever ao Pai Natal, dando cabo da cabeça, nas compras em dezembro, a gastar o cacau que não tinham, como as de hoje nas lojas do Toys R Us.

Mas o que é que essa Rua 6 tem mais que as outras ? Tem mel.

Rui Gonçalves

Cada vez que me encontro com amigos de infânçia, que residem no estrangeiro, fazemos juntos o mesmo contacto. Temos amizades inter-geracionais entre nós. Isto já era assim antigamente, é agora um facto real e continuará a ser com as geraçoes futuras. Os meus avós que também ali viveram, chegados como tantos outros de vários sitios diferentes em meados do século XX, época em que o bairro foi construído. Depressa fizeram conhecimento com os vizinhos à medida que se instalavam. Amizades vieram completar e cimentar as relações que tinham.

O bairro, dito social que ali foi saindo daquelas terras de alfaces, espelhava os  avanços do urbanismo moderno. Bem delimitado em duas partes distintas que a Avenida de Roma separava, uma a nascente comercial e outra ao poente residencial. A estructura do plano de ocupação foi claramente pensada, tendo em conta o relevo topográfico (o ponto culminante encontra-se no conjunto escolar primário, a 33,  sobretudo a escola das raparigas, cujo número  não me lembro (Eu não aindei lá, claro). Todas ou quase todas as ruas convergem para ali. Noutros tempos, os traços retilíneos e paralelos, marcaram a vontade pombalina de conferir à cidade um aspecto prático e moderno, como feito na Baixa. O factor sol joga aqui plenamente o seu papel. A luz difundida expõe as ruas a uma luminosidade particular, segundo a sua direcção.

A partir do Campo Grande três colunas partem para o topo. Se a Av. do Brasil representa a « Força » daquele rasgo primário até ao Pote de Água, onde se encontravam os chalets mais antigos. A Av. dos Estados Unidos da América representa a « Beleza » com aqueles prédios mais chics e construídos posteriormente, chics sim ! A nova vaga ali se reunia no café VÁVÁ e as senhoras safadas com sede, bebiam uns branquinhos ou verdinhos frescos em chávenas de chá (porcelana da Vista Alegre). A terceira e última coluna a « Inteligência » é a Av da Igreja, eixo central do bairro, para elevar simbolicamente os seus habitantes e sacralizar o local.

As cinco ruas, perpendiculares a Av. da igreja, eram numeradas sequencialmente de um a cinco. Enquando a seis e a sete, paralelas às avenidas ascendentes, com os seus largos ao topo, dão-nos a impressâo de serem as duas colunas « J » e « B » que se encontravam à entrada do Templo de Salomão. Sustentam, vistas num plano, o Templo da Sabedoria que é a Escola. Lugar de conhecimento transmitido pelo Ensino Público na pura tradição de Jules FERRY, uma escola laica e aberta a todos. Eis aqui o nosso bairro nas suas grandes linhas. O facto de voluntariamente não construir grandes prédios, privilegiou uma integraçao populacional originária de differentes meios sociais e aqui se misturou. De seis a oito fogos no máximo, entre dois a três andares por prédio, a convivialidade criou-se. Para nós que ali nascemos foi natural, mas para aqueles que para ali foram morar foi uma agradavél surpresa.

Os meus avós foram amigos dos avós do Jorge-Alexandre, da Carla, do Nuno, da Ludomila, do Rui Almaça. Os meus pais também. Eu pesssoalmente lembro-me da Teresa e do Celestino Simoes me levarem para a praia de carro, mesmo se eu não era da mesma geração que eles e íam num grupo de amigos da mesma idade, levavam também putos como eu. Os meus filhos são amigos, como eu, dos filhos deles. Os nossos avós, os nossos pais, nós, os nossos filhos e netos e daqui a pouco bisnetos têm ou tiveram durante a suas vidas contactos de amizade. Eu chamo mais que amizade. São três, quatro, cinco gerações que se conhecem. Se isto não é mel, digam-me então o que é, minhas abelhinhas.