Espaço Público de Lisboa

Nos últimos quatro anos os espaços públicos de Lisboa foram abandonados, e em especial na Freguesia de Alvalade. Numa altura que se procede à avaliação do que foi prometido e realizado pelos autarcas eleitos, vamos recordar, neste mês, a obra dos arquitectos paisagistas que no seu tempo, construiram os espaços verdes da freguesia. O nosso guia é o excelente livro de Teresa Bettencourt da Câmara - Espaço Público de Lisboa. Plano, projecto e obra da primeira geração arquitectos paisagistas (1950-1970). Lisboa. 2021.

O livro é uma homenagem ao Francisco Caldeira cabral(1908-1992), que instituiu no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, o ensino da arquitectura paisagista. Foi aqui que se formou a primeira geração de profissionais em paisagismo. Entre os que trabalharam na cidade, entre 1950 e 1970, destacam-se Manuel Azevedo Coutinho (1929-), Gonçalo Ribeiro Telles (1922-), Edgar Sampaio Fontes (1922-), António Viana Barreto (1924),António Campello (1924), Alvaro Dentinho (1924-), Ilídio de Araújo e Manuel Sousa da Câmara(1929-). Esta primeira geração de paisagistas passou a colaborar na CML não apenas em grandes projectos urbanisticos, como o Bairro de Alvalade, Bairro da Ajuda, Bairro da Encarnação ou o Bairro dos Olivais, mas também nas construção de parques, alamedas, pequenos jardins ou remodelação de simples arruamentos, valorizando os espaços públicos. Foi uma verdadeira revolução que o livro dá conta e documenta.

O período abrangido pela obra foi particularmente fértil em grandes projectos urbanisticos, não apenas em Portugal. No caso de Lisboa, sofreu um anterior impulso, como é sabido, com Duarte Pacheco (1900-1943), primeiro enquanto ministro das obras públicas (1932-1936), e depois como presidente da CML (1938-1943). Nesta profunda remodelação da cidade, temos a marca de urbanistas como Étienne de Groer, João Guilherme Faria da Costa (1906-1971) e arquitectos como Keil do Amaral, entre muitos outros.

No território da actual freguesia de Alvalade, alguns destas arquitectos paisagistas deixaram obras, hoje infelizmente muito alteradas devidos a sucessivas alterações ou devido abandono camarário e vandalismo desapareceram.

Manuel Azevedo Coutinho: o parque anexo à Piscina Municipal do Campo Grande; jardim junto ao centro escolar da célula nº1 em Alvalade (1950); jardim junto ao centro escolar da célula nº2 em Alvalade; arborização do centro escolar da célula nº.3 em Alvalade; Placa lateral ao norte do Campo Grande; Avenida da Igreja; Jardim do Largo Frei Heitor Pinto; Jardim da Célula nº2 em Alvalade; Placas centrais da avenida do Aeroporto (Av. Gago Coutinho (1951); Projecto para o jardims do Campo Grande (1954).

Formou-se em Engenharia Agronómica e concluiu o Curso Livre em 194, com a tese O Jardim Botânico da Ajuda. História da sua evolução. Estado presente do jardim. Projecto de remodelação. Lecionou no ISA entre 1950 e 1953. Iniciou a sua colaboração com a CML em 1949, justamente com o enquadramento paisagistico das piscinas no Campo Grande.A partir de 1954 deixou de projectar, dedicando-se à remodelação de vários viveiros municipais.

António Viana Barreto, com outros colegas: Arranjos exteriores da Biblioteca Nacional, Edificios da Universidade de Lisboa e do Estádio Universitário de Lisboa. Formou-se em Engenharia Silvicola e concluiu o Curso Livre em 1952, com atese O Parque de Monsanto e a Cidade de Lisboa. Em 1953 entrou para a Direcção Geral dos Serviços de Urbanização, onde projectou e realizou os jardins envolventes de monumentos nacionais. Como profissional libera, em parceria com outros engenheiros e arquitectos, como Alvaro Dentinho e Porfírio Pardal Monteiro, projectou as obras acima referidas em Alvalade.

Manuel de Sousa da Câmara: espaços verdes da av. dos EUA e da Av. do Brasil; Mata de Alvalade. Licenciou-se em Engenharia Agronómica e concluiu o Curso Livre em 1957. Entre 1954 e 1961 trabalhou na Direcção-Geral dos Serviços Agricolas - Repartição de Construções Agricolas, Defesa e Conservação do Solo. A partir desta data, integrou a 3ª. Repartição de Arborização e Jardinagem da CML, realizando vários em Alvalade. A partir de 1971 passou a exercer a arquitectura paisagista em regime de profissão liberal, não se conhece nenhum outro projecto em Alvalade.

Gonçalo Ribeiro Telles: Formou-se em Engenharia Agronómica e concluiu o Curso Livre em 1950, com a tese Um caso concreto de Ordenamento Paisagistico. Estudo de três herdades no Concelho de Coruche. Iniciou a sua carreira na CML em 1950, projectando jardins e arruamentos nos novos bairros de Lisboa, como o de Alvalade. O Jornal da Praceta tem feito multiplas referências à sua vasta obra em Lisboa, e em particular no Bairro de Alvalade.

Mata de Alvalade e Jardins

Faria da Costa previa para a Mata de Alvalade um complexo desportivo, incluindo uma piscina. Ribeiro Telles, em 1950/51, desenvolveu um plano de arborização envolvendo o complexo desportivo, incluindo a criação de um lago. A arborização avançou lentamente. Em 1965, Sousa da Câmara elaborou um novo plano de arborização, colocando o complexo desportivo nas margens da mata. Três anos depois a mata já estava invadida por barracas na encosta e no arieiro do Narigão. O complexo desportivo (possivel) foi construido, mas as barracas acabaram por condicionar durante décadas a própria mata e a sua envolvente. A sua completa recuperação ainda está por fazer. 

Arruamentos

A construção do Bairro de Alvalade, nos seus principais eixos viários recebeu um cuidado especial por parte da CML. O primeiro projecto paisagistico para um arruamento foi o da Avenida da Igreja (1950), incluindo o largo Frei Heitor Pinto, projectos de Azevedo Coutinho. Projectou também o ajardinamento das placas centrais da Avenida do Aeroporto. Ribeiro Telles projectou o ajardinamento da  Av. Rio de Janeiro (1951), Av. de Roma (1955), concebeu projectos para a Avenida D. Rodrigo da Cunha (1953), Av. dos Estados Unidos (1958), jardim do miradouro da Rua Eduardo de Noronha, jardim de enquadramento da Igreja S. João de Brito frente à Avenida D. Rodrigo da Cunha, jardins do Bairro das Estacas (1953),etc.

Bairro de Alvalade

A envolvente dos vários equipamentos do Bairro de Alvalade receberam igualmente um cuidado planeamento paisagistico. Azevedo Coutinho intervém nos espaços ajardinados envolventes das escolas da Células 1 e 2 (1950), e no da escola da célula 7 (B. S. Miguel). Edgar Fontes (1954), em 1956 na Célula 4 (Esc. Gago Coutinho, em 1956/58 na célula 6 (Esc. S. J. B. Brito).

Francisco Caldeira Cabral e os Logradouros de Alvalade

Francisco Caldeira Cabral tem sido referido como o autor dos projectos de arborização dos logradouros do Bairro das Caixas. Uma afirmação falsa, mas que nada diminui a sua obra paisagista. Chegou a Portugal, em 1939, após ter concluído o curso de arquitectura paisagista em Berlim sob a orientação do Mestre Professor Wipking. No Instituto Superior de Agronomia, a partir de 1942 passou a ministrar um curso livre de arquitectura paisagista. Criou em 1953, o Centro de Estudos de Arquitectura Paisagista, com assento na Federação Internacional de Arquitectos Paisagistas. Desenvolveu uma ampla actividade de publicações e iniciativas neste domínio. Um dos seus conceitos inovadores foi o de continuum naturale que procurava preservar as estruturas fundamentais da paisagem e a sua penetração no tecido edificado através de corredores verdes. Em Alvalade destacamos da sua autoria os jardins e arborização do Hospital Júlio de Matos (1942-1943).

Os logradouros de Alvalade estavam previstos no plano de Faria da Costa, tendo no seu interior caminhos pedonais, constituindo o arvoredo o elemento limitador das oito células do Bairro de Alvalade. Nas células 1 e 2 (Bairro das Caixas) , as primeiras a serem construídas, os planos de arborização e jardinagem foram confiados à 3ª. Repartição – Arborização e Jardinagem (RAJ) da Direcção dos Serviços Técnicos-Especiais (DST-E) da CML, então chefiada pelo engenheiro silvicultor José D’Orta Cano Pulido Garcia (1904-1983).

Nestas células, os jardins das duas escolas e os "logradouros comuns" entre os edificios foram da responsabilidade de Manuel Azevedo Coutinho (1921-1992), antigo aluno de Francisco Caldeira Cabral.

Cedo se percebeu que os logradouros das células 1 e 2, acabariam por originar no futuro graves problemas. No relatório elaborado por Manuel Azevedo Coutinho, em 1949, assinala vários problemas resultantes do projecto urbanístico destes logradouros: insalubridade, em particular nos seus pisos térreos, deficiente limpeza e manutenção pela CML, a produção agricola seria sempre escassa, previa inclusive a ocupação destes espaços por construções precárias. Era uma experiência que não devia ser repetida no Bairro de Alvalade. Neste sentido, os novos logradouros construídos na Av. Dom Rodrigo da Cunha e no Bairrro de São João de Deus (Bairro das Estacas) foram abertos à circulação das pessoas, o mesmo aconteceu nos dois lados da Av. dos EUA e no Conjunto Habitacional do Montepio na Av. do Brasil.

Os problemas identificados acabaram por agravaram-se com o tempo, tornando-se numa chaga a partir dos anos oitenta do século XX. Os logradouros das células 1 e 2 foram inundados por barracas, toneladas de lixo, ratazanas e todo o tipo de bicharada. A indefinição quanto à propriedade destes terrenos, entre a CML e o IGFSS (absorveu a Federação das Caixas de Previdência) ao provocar o seu abandono, facilitou a ocupação ilegal dos logradouros. Os caminhos de pedonais foram obstruídos ou destruídos. Por volta de 2000, como escrevemos, Ribeiro Teles elaborou um projecto para a sua recuperação, nomeadamente para travar a crescente impermeabiilização dos solos devido às construções clandestinas.

A Junta de Freguesia de Alvalade (PS), em 2014, resolveu clarificar a situação da propriedade dos logradouros. Uma questão que servia de argumento para manter o seu abandono. Pressionou a CML, sob a liderança de António Costa/Fernando Medina, e esta entendeu-se com o IGFSS, um processo que foi resolvido com a aquisição pela autarquia dos terrenos sobrantes. Havia agora um entidade pública a quem se podia pedir responsabilidades. Foi então possivel, pensar na requalificação dos logradouros dos Bairro das Caixas, processo que foi iniciado no ano seguinte, com a remoção de toneladas de lixo. A extrema-direita, como é sabido, atacou a requalificação dos logradouros falando em negócios ocultos, corrupção.

Próximo das eleições autárquicas, em 2021, uma freguesa de Alvalade, copiando o discurso da peste que se instalou na freguesia, adquiriu alguma notoridade pública na cruzada contra a requalificação dos logradouros das células 1 e 2, qualificando-as como acções criminosas. Afirma defender o legado de Francisco Caldeira Cabral, esquecendo que ele e Manuel Azevedo Coutinho justamente condenaram este tipo de logradouros, apontando como problemas os que a requalificação iniciada em 2014 procurou corrigir.

Hospital Júlio de Matos

Hospital Júlio de Matos

Hospital Júlio de Matos

Uma das oliveiras plantadas no Dia Mundial do Ambiente (5/06/2023), dedicada às JMJ em Lisboa. A manutenção dos jardisn e arvoredo do tempo de Francisco Caldeira Cabral nunca teveram uma manutenção adequeada. O que hoje podemos observar no Parque de Saúde de Lisboa é uma pálida imagem, muito decadente, dos seus tempos aureos. No dia anterior a termos tirado estas fotos, caiu mais uma árvore de grande porte no parque. Fotos: 29/03/2024