Casamento do Pide no Pote de Água

 

 

 

Decorria um verão muito quente e o Sol tardava a esconder-se, num fim de tarde dos primeiros anos da década de 70 do Século passado. No Largo Frei Heitor Pinto, na freguesia de S. João de Brito (agora Alvalade), não havia ainda a rotunda no cruzamento da Avenida da Igreja com a Avenida Rio de Janeiro, nem o avião/monumento dedicado a Gago Coutinho e a Sacadura Cabral.

Havia um pequeno restaurante Tico-Tico, propriedade dum antigo empregado da Cervejaria Nova Lisboa de nome João. O Tico-tico não tinha ainda a expressão do atual. Só alguns anos depois, cresceu à custa do espaço de uma outra cervejaria Novo Rio em decadência, pouco frequentada, que vendia caracóis, junto à Garagem Rio de Janeiro; e cresceu também para o outro lado, à custa de uma tabacaria, do Lugar de Frutas da Júlia, e duma casa de confeções com porta para a Av. da Igreja.

Tudo o mais neste largo tinha o aspeto que tem agora.

Em frente da Igreja de São João de Brito já estavam os tristes ciprestes, o relvado, o lago nesse tempo pouco cuidado, imundo, malcheiroso, sem peixes nem patos, com o fundo repleto de limos e lodo, pedras e vidros de garrafa que para lá deitavam. Uma ou outra pomba ou algum cão aqui vinham beber, pois escasseava melhor água...nem havia ainda o recurso ao bebedouro de pessoas que mais tarde foi colocado ao lado do lago.

De repente, a descer a Av. Rio de Janeiro em passo apressado, surge a cambalear um homem alterado, no andar e no comportamento, cheio de vinho e de teimosia.

Atrás dele, uma “procissão”! Era um homem enorme, bem vestido, com vários outros homens a segui-lo, também com fatos domingueiros, a pé ou de automóvel a tentarem detê-lo, com modos suaves.

Alguém deu a notícia: Vêm do Pote de Água da festa de casamento dum PIDE (agente da polícia política do Estado Novo). Este embebedou-se e não há quem tenha mão nele!

Começou a juntar-se pessoal no largo, em volta do lago. Eram mais duma centena, e o espanto e a risota eram generalizados, mas contidos...

O grande, dirige-se ao lago, despe a roupa, que atira para a relva e, em cuecas, atira-se para a água, que nem ao joelho lhe chegava. Os seus colegas, “perseguidores” bem tentavam, às boas, fazê-lo sair, pois receavam que ele se ferisse nos vidros ou simplesmente escorregasse e se magoasse na queda.

Com o mesmo propósito o João, dono do Tico-Tico de então, estendeu-lhe um pequeno tubo de plástico para ele agarrar. O bêbado não mordeu o “anzol”. Não só não agarrou o tubo, como reagiu e, com as mãos, fez concha e deu um banho de água suja ao João.

Comentário do Carmona que morava no no 3 da Av. da Igreja: Oh senhor João, o senhor, que dizem ter tanta aceitação junto dos PIDEs. Não consegue nada com esse?

O João, que tinha fama de atender à noite os PIDEs em fim de turno, e de lhes servir alguns “pregos” e passar algumas informações, após o fecho da cervejaria, ficou melindrado pelo comentário do Carmona e foi lamentar-se junto dos seus amigos.

Estes começaram a procurar o Carmona, que os populares rodearam e esconderam.

Nesta altura o dono da decadente cervejaria tentou ajudar os PIDEs na procura do Carmona: Eu conheço-o é comunista, estava aqui, foi por ali, etc.

Mas não encontraram o Carmona, escondido sob a proteção dos mirones. Carmona, escapou pelo meio da multidão e, como tinha a casa perto...

O PIDE bêbado continuava a deliciar-se no banho e, em volta os colegas, cada um à sua maneira, tentavam protegê-lo: Não te mexas, sai daí, vem cá. Até que um, talvez mais graduado, lhe ocorreu e disse com voz grossa: Vão lá chamar os bombeiros!

Veio a Polícia de Segurança Pública. Vieram vários bombeiros, com forte aparato: fatos de mergulho, barcos de borracha, cordas, arco de aço com cabo de madeira, maca. etc. Os PIDEs rejeitaram a solução das cordas e do arco (queriam lá que o colega se assemelhasse a um bezerro?) ... e recomendaram aos bombeiros que tivessem muito cuidado na abordagem do colega, não fosse dar-se o caso de ele se aleijar nos vidros ou que partisse algum membro ao cair.

Só depois começou a intervenção dos bombeiros. Com decisão, saltaram para a água, dois ou três bombeiros. Envergavam fatos de mergulho e, com ar amigável, agarraram o homem.

Fosse por cansaço, ou porque a bebedeira já tinha reduzido passado este tempo, ou por qualquer outra razão, o PIDE saiu manso como um cordeirinho, pelo seu pé, apenas amparado com firmeza pelos bombeiros. Nem precisou da maca.

Foi um fim de tarde muito ocupado, para quem não tinha nada que fazer. Divertido ou triste consoante o grau de simpatia que se tinha por estes protagonistas. Mas a verdade é que o espetáculo teve tanto de ridículo como de hilariante. Fomos assim, testemunhas dum espetáculo oferecido casualmente e a contragosto por agentes do poder político.

Gaspar Santos, 2023