Bairro das Caixas
Ecos na Comunicação Social
A Qualidade Não Passa por Aqui
Por RUI VALADA*
Domingo, 13 de Junho de 2004, Público
Em Lisboa, algumas intervenções recentes,
pontuais, no espaço público fazem-nos temer o pior. Surgem sem programa e sem
aviso, não vá alguém questionar, pedir alguma informação, e, quando damos
por elas, já lá estão e não há nada a fazer. Aparece sempre um cartaz a
anunciar que Lisboa está mais bonita e as pessoas, conformadas ou mal
informadas, vão dizendo «sempre está mais arranjadinha».
Mas não deveria ser assim.
Hoje todos reconhecem que qualquer intervenção
no espaço público tem de apostar decisivamente na qualidade, que começa pela
qualidade do projecto, passa pela qualidade dos materiais e acaba na qualidade
da manutenção.
A qualidade do projecto não se reduz ao desenho,
que se pretende sóbrio e intemporal. Implica igualmente a compreensão do sítio,
o conhecimento da história do lugar, das vivências que por ali passaram, para
que se possa projectar no futuro sem ruptura com o passado ou, quando essa
ruptura existe, que seja justificada e compreendida.
A qualidade dos materiais relaciona-se com
aspectos estéticos mas também com outros que asseguram a sustentabilidade do
projecto, a sua adaptação ao meio e resistência às agressões externas.
E, sem conservação permanente e cuidada, não há
projecto, por melhor que seja, que resista à enorme pressão que, nos grandes
centros urbanos, se faz sentir sobre o espaço público.
Ainda que todos aceitem como generalidades o que
ficou dito, é desolador ver o que se passa à nossa volta, um pouco por todo o
lado. Os maus exemplos sucedem-se, numa vertigem assustadora que nos atira para
um país subdesenvolvido, pouco preocupado com padrões ambientais, estéticos e
de qualidade.
Eis alguns exemplos, escolhidos pelo que têm de
representativo:
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Bairro de Alvalade - Inserido no plano de
urbanização elaborado pelo arq. Faria da Costa, em pleno Estado Novo, o bairro
foi-se desenvolvendo por células ou unidades de vizinhança, «onde se apostava
na integração socio-espacial através da mistura de diferentes tipos de habitações
a que correspondiam estratos sociais diferenciados» (João Pedro Costa, Bairro
de Alvalade).
As células 1 e 2, entre o Campo Grande/ Av. de
Roma e Av. Estados Unidos da América/Av. do Brasil, foram as primeiras a ser
construídas e destinavam-se a habitação social. Estavam organizadas em torno
de equipamentos sociais - igreja e escola - e a sequência de logradouros, bem
como os espaços verdes entre a fachada e o passeio arborizado, tinha subjacente
o conceito de cidade-jardim.
As ligações entre a habitação e a escola e/ou
igreja foram encurtadas e facilitadas pela existência de pequenos percursos
pedonais entre os prédios, atravessando logradouros que se pretendiam contínuos
e não vedados. Procurou-se, assim, que a circulação pedonal fosse
independente da circulação automóvel, com percursos próprios que
facilitassem as relações de vizinhança e aproximassem as crianças da escola.
Os logradouros públicos, situados no interior dos quarteirões, destinavam-se a
zonas verdes de recreio informal para os habitantes de cada unidade de vizinhança.
Tudo isto foi desvirtuado com a ocupação
selvagem dos logradouros pelos moradores de fracos recursos económicos que os
retalharam em pequenas parcelas para usos diversos, hortas, galinheiros,
pombais, arrumos e garagens, numa sucessão indescritível de barracas. Na
frente dos prédios, os espaços verdes foram delimitados por vedações de
todos os tipos, materiais e feitios, ao gosto de cada um, sem qualquer coerência
e continuidade, abastardando o conceito original.
E quando se pensava que a renovação do bairro -
com a entrada de uma população mais jovem e mais atenta à qualificação
urbana - permitiria uma intervenção séria, estudada, com base num desenho
urbano coerente, eis que todas as esperanças caem por terra.
É a própria autarquia que vai reproduzir o
mesmo modelo de ocupação dos espaços verdes, delimitando os poucos que
restavam ainda livres por muretes revestidos a tijoleira barata, decorados com
plantas herbáceas anuais e pequenos arbustos, sem escala, e sem esquecer o
requinte maior da faixa de seixo branco rolado, bem ao gosto pimba. Quando as
flores perderem o viço, a tijoleira se partir e os seixos forem roubados nada
distinguirá esses canteiros de todos os outros, acrescentando-se um pouco mais
de caos ao caos existente e contribuindo para a degradação geral do bairro.
Nessa altura, que acontecerá às inúmeras
placas que, em cada canteiro, procuram convencer o cidadão desprevenido que o
bairro está cada vez mais bonito?
FOTO 1
Avenida da Liberdade- Prolongamento do
Passeio Público, a Av. da Liberdade é projectada por Ressano Garcia e reproduz
o conceito de «boulevard», permitindo a expansão da cidade para Norte. Veio a
ser inaugurada em 1886, por ocasião do casamento de D. Carlos e D. Amélia, e
sempre foi encarada como a mais emblemática artéria de Lisboa.
A sua configuração actual está fortemente
condicionada pela circulação automóvel que impõe faixas laterais e múltiplos
atravessamentos viários. Sucessivas camadas de betuminoso abaularam as faixas
de rodagem, já mais altas que os próprios passeios, desfigurando o perfil da
avenida.
Os passeios laterais são reduzidos e estão
atravancados de carros que chegam muitas vezes a ocupar os passeios centrais
ajardinados. Estes, no troço junto aos Restauradores, estão ainda ocupados por
restaurantes e esplanadas, cujos proprietários se arrogam o direito de
delimitar e alindar os espaços conforme entendem, proliferando os mais variados
tipos de mobiliário, toldos, chapéus, vasos e outros melhoramentos, desde o
estrado para o bailarico saloio aos écrans de televisão.
A poluição, o ruído, as intrusões visuais, o
desconforto provocado pelos inúmeros obstáculos, a descontinuidade do
percurso, desqualificaram toda a avenida e hoje em dia não é mais agradável e
convidativo percorrê-la de cima abaixo, num passeio descontraído.
Os problemas estão todos inventariados e existem
estudos, planos e projectos que apresentam soluções que podem ser aproveitadas
ou servir de ponto de partida para a definição de outra estratégia de
intervenção.
Em lugar dessa tão urgente operação de
requalificação urbana, amplamente anunciada faz agora um ano, fez-se uma operação
de cosmética que se traduziu na plantação de herbáceas nos espaços
ajardinados, como se tal não devesse decorrer da normal conservação de
qualquer jardim. Nem sequer foi lançada uma discussão alargada sobre o que
fazer naquela zona da cidade, como ligar entre si os espaços verdes das duas
colinas que ladeiam a avenida ou que tratamento dar ao fluxo de tráfego. E foi
novamente descurada a manutenção das flores que só em alturas de festividades
surgem no seu esplendor de cores e formas.
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Terreiro do Paço - Praça destinada desde
sempre à representação do poder, é a única que sobressai em Lisboa pela sua
espectaculosidade e imponência. Aberta sobre o Tejo, é varrida pelas brisas
marítimas que a tornam algo inóspita.
Quem se lembra do Cais das Colunas saberá por
certo que a sua beleza frágil necessita de um largo espaço fronteiro tão
livre de obstáculos quanto o rio que se espraia por detrás. Apenas um barco ou
uma estátua, pequenos na dimensão do espaço onde se encontram, não estragam
a luminosidade e o equilíbrio do lugar.
E ainda que o Cais das Colunas esteja encaixotado
à espera de uma qualquer inauguração, isso não justifica que, até lá, a
praça seja atravancada de objectos que a desfiguram, lhe retiram nobreza e carácter,
e nem sequer são adequados aos fins a que se destinam.
Tudo isto a propósito de umas tendas de plástico
com esplanada que alguém se lembrou de ali plantar, bem no meio, enquadradas
por vedações de corda e archotes finórios, a lembrar uma festa de casamento.
Trata-se de algo efémero, disseram, mas apetece perguntar que razões levam a
transformar a praça monumental de Lisboa num arraial.
*Arquitecto paisagista |